Internet e a comunidade no Brasil: histórico, problemas e opções (1996)

Afonso, Carlos A., A Internet e a Comunidade no Brasil: Histórico, problemas e opções, IEEE Communications Magazine, julho de 1996.

A Internet no Brasil vive um crescimento explosivo. Gerado pelo interesse público impulsionado pela mídia que começou no início de 1994, esse crescimento tomou caminhos únicos em comparação com outros países latino-americanos. Embora os números absolutos e relativos ainda sejam muito pequenos em relação aos Estados Unidos e Canadá, o Brasil já lidera outros países latino-americanos em números de usuários (estimados em cerca de 200 mil em março de 1996) e hosts. A tabela abaixo ilustra a taxa de crescimento dos hosts da Internet no Brasil nos três primeiros meses de 1996 (Tabela 1).

Em um país onde toda a infraestrutura de comunicação de dados e telefonia está sob monopólio estatal (TELEBRAS), os serviços de Internet para usuários finais estão dispersos por centenas de provedores privados de todos os portes, enquanto os backbones de Internet operados por empresas transnacionais como IBM e Unisys são sendo instalado para concorrer com um backbone estatal (Internet Brasil) e outro estatal (serviço de Internet da EMBRATEL). Quão ampla (e barata) será a disponibilidade da Internet para os cidadãos brasileiros? Este artigo descreve uma atividade de rede não-governamental e como ela evoluiu de uma rede puramente acadêmica para uma que atende a um público muito maior.

Tabela 1

Mês

jan.96

Fev.96

março de 96

Número de hosts da Internet

17.429

25.960

28.473

Fonte : FAPESP, São Paulo (FAPESP é a organização de financiamento à pesquisa do governo do estado de São Paulo responsável por alocar nomes e números de PI no Brasil).

ORIGENS DA REDE ALTERNEX

Até 1994, a Internet no Brasil estava restrita (com uma exceção) a iniciativas acadêmicas que começaram no final dos anos 80 e se desenvolveram sob a coordenação de um consórcio nacional denominado Rede Nacional de Pesquisa (RNP), em um processo semelhante em vários aspectos ao programa US NSFNet. Financiada pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), autarquia federal vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a RNP iniciou a implantação de um backbone nacional, com a fase experimental iniciada em 1990.

A exceção tem sido um esforço de um instituto independente de pesquisa e consultoria no Rio de Janeiro, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Fundado em 1981 como uma iniciativa pioneira para democratizar as informações sociais e econômicas durante a ditadura militar, o Ibase também dedicou muita energia para encontrar formas criativas e de baixo custo de usar a tecnologia de microcomputadores para processamento e troca de informações. Em julho de 1989, inaugurou oficialmente o AlterNex, um serviço eletrônico de troca de informações baseado em sistemas UNIX que oferece serviços de correio eletrônico internacional e conferência eletrônica.

A transferência internacional de mensagens foi possibilitada pela parceria entre o IBASE e o Institute for Communications (IGC), uma organização com sede em San Francisco dedicada a democratizar redes de computadores que opera PeaceNet, ConflictNet, EcoNet e outras redes comunitárias. Duas vezes por dia, uma das máquinas UNIX do IGC em Menlo Park, Califórnia, ligava para AlterNex no Rio (chamada internacional de longa distância), e estabelecia uma conexão UNIX I Copy Program (UUCP) para enviar mensagens entre os dois sistemas. A chamada telefônica teve origem nos Estados Unidos porque era cerca de quatro vezes mais barata do que ligar do Brasil.

O IBASE, juntamente com o IGC e outras instituições, é membro fundador de uma parceria internacional de organizações com objetivos semelhantes denominada Association Progressive Communications (APC). Fundada em maio, a 15 hoje inclui cerca de 20 membros e dezenas de pequenas operadoras (geralmente são pequenos sistemas de quadros de avisos, ou BBSs) em parcerias especiais que incluem subsídios limitados de chamadas UUCP internacionais caras.

A missão da APC é garantir que sistemas de e-mail locais, de baixo custo e alcance internacional possam ser disponibilizados em qualquer país para a comunidade de grupos de base de organizações ambientais e de direitos humanos, sindicatos, associações de moradores, instituições de educação popular e outros grupos comunitários, bem como indivíduos que defendem os princípios da democracia e justiça social da APC. Esses sistemas locais são conectados ao seu homólogo APC estrangeiro mais próximo (a proximidade aqui é determinada pelo custo das chamadas internacionais, e não pela geografia), geralmente nos Estados Unidos ou na Inglaterra para aproveitar os sistemas de serviços de Internet e reduzir os custos das chamadas internacionais UUCP.

Usando UUCP e moderna tecnologia de modem, a APC construiu uma importante organização internacional independente e sem fins lucrativos que constitui hoje o maior espaço internacional para troca de informações entre organizações comunitárias, abrangendo mais de 30.000 organizações de usuários em quase todos os países. Em áreas onde a Internet está disponível, os sistemas locais da APC (como o AlterNex) também se tornaram provedores completos de serviços de Internet.

Até 1992, o AlterNex fornecia apenas conectividade de e-mail à Internet. No entanto, no final de 1990, várias organizações ambientalistas procuraram o Ibase para sugerir o desenvolvimento de um grande projeto independente de comunicação eletrônica a ser disponibilizado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), realizada no Rio em junho de 1992. O objetivo era dar acesso através dos sistemas APC e Internet aos eventos da conferência a centenas de ONGs que não poderiam vir ao Rio. O IBASE preparou um projeto de Internet detalhado para a UNCED e o submeteu à Secretaria da UNCED. Foi aceito e incluído como parte do acordo geral de país-sede entre o governo do Brasil e as Nações Unidas para a conferência. Como consequência, o AlterNex passou por uma grande atualização, substituindo suas antigas máquinas UNIX baseadas em 386 por uma rede de estações Sun SPARC especialmente doadas pela Sun Microsystems.

Foi então estabelecida uma estreita parceria entre o IBASE e a RNP, e quando a UNCED iniciou uma matriz de redes locais de microcomputadores em todos os locais oficiais da conferência, conectados ao AlterNex por linhas alugadas e de lá à Internet por uma rede internacional de 64 kb/ A ligação da RNP com os Estados Unidos, operada pela RNP, estava em pleno funcionamento. Este foi um exemplo único de parceria entre as Nações Unidas, uma organização não governamental independente (IBASE) e uma rede acadêmica (RNP) para fornecer serviços de comunicação internacional para organizações não governamentais em uma conferência oficial das Nações Unidas. O projeto UNCED também contou com a colaboração voluntária de outros sistemas APC.

Assim, as iniciativas do IBASE e da RNP tornaram-se estreitamente associadas desde então, e o AlterNex tornou-se, desde junho de 1992, o primeiro sistema completo de Internet do Brasil aberto ao acesso público. Para centenas de organizações não-governamentais e indivíduos brasileiros, isso significa o privilégio de acesso a uma gama completa de serviços de Internet pelo menor custo possível.

Também como consequência do projeto UNCED, a APC foi capaz de realizar projetos de rede semelhantes nas conferências das Nações Unidas que se seguiram, principalmente a Conferência de Direitos Humanos, Viena, Áustria, 1993; Conferência sobre População e Desenvolvimento, Cairo, Egito, 1994; a Cimeira Social, Copenhaga, Dinamarca, 1995; e Conferência sobre Mulheres e Desenvolvimento, Pequim, República da China, 1995. Como resultado, em 1995 a APC tornou-se membro do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC).

É interessante observar o padrão de crescimento da base de usuários do AlterNex entre 1990 e 1996 (Tabela 2). Como o AlterNex é um importante hub UUCP para mais de 130 serviços de quadro de avisos (BBSs) no Brasil, o número total de usuários que têm acesso a serviços de Internet (no caso de usuários de BBS, basicamente e-mail e newsgroups) por meio do AlterNex vai muito além 20.000.

O crescimento de usuários acelerou desde 1994 devido à "descoberta" da Internet pela mídia brasileira. Como resultado, o AlterNex sofreu muita pressão para acomodar uma demanda adicional, principalmente de jovens da classe média alta que, em um país em desenvolvimento como o Brasil, têm condições de comprar um computador pessoal.

Tabela 2

Tabela 2 - Padrão de crescimento da base de usuários do AlterNex, 1990-1996

datas

9/90

8/91

7/92

8/93

12/94

12/95

3/96

pagando

120

480

700

760

1.280

5.000

5.500

Livre

40

80

90

250

220

200

150

Total

160

560

800

1.010

1.500

5.200

5.700

Nota : A base de usuários atual inclui 4.000 usuários na área do Rio e cerca de 500 usuários em São Paulo. Contas de usuários pagantes abertas durante o período da conferência UNCED. "Pagando" indica contas de usuário que contribuem com o AlterNex pagando mensalmente gratuitamente. As contas gratuitas são principalmente para funcionários do AlterNex, APC e IBASE.


APROVEITANDO A REDE: A CONSTRUÇÃO DA INTERNET BRASIL

Em 1994, foi tomada uma decisão do Ministério da Ciência e Tecnologia para apoiar o pleno desenvolvimento de um grande backbone de Internet no Brasil como uma rede pública para uso geral. Em maio de 1995, o Comitê Gestor da Internet Brasil (CGIB) foi criado em conjunto pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e pelo Ministério das Comunicações (que controla o monopólio estatal das telecomunicações, a TELEBRAS). O AlterNex, por sua vez, era uma espécie de caso de teste de um sistema de uso geral que dependia da RNP para seu tráfego de Internet.

Em um desenvolvimento relacionado (e conflituoso), no final de 1994 a EMBRATEL (o monopólio de longa distância da TELEBRAS) iniciou um serviço experimental de Internet, com o objetivo original de construir um monopólio verticalizado de serviços de Internet. Isso ia contra um dos princípios defendidos pelo CGIB: desenvolver um backbone de Internet em que o acesso fosse igualmente assegurado a todos os serviços privados de Internet tornando-se provedores de acesso aos usuários finais.

Assim, a EMBRATEL foi obrigada a encerrar seu serviço experimental até dezembro de 1995, mas conseguiu prorrogar esse prazo com o argumento de que não havia outras prestadoras disponíveis, o que obviamente não era verdade. Desafiando as instalações de provedores de serviços masculinos acima. Durante 1995, a EMBRATEL abriu seu próprio backbone de Internet para uso público por provedores de serviços de Internet, gerando dezenas de provedores, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Na verdade, o backbone da EMBRATEL depende principalmente de sua antiga rede de comutação de pacotes, RENPAC, com links alugados convergindo para um único centro de operação no Rio.

Em outro desdobramento, parte da comunidade acadêmica carioca, liderada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio (Faperj), defendia que a RNP deveria continuar sendo uma rede exclusivamente acadêmica, sujeita a subsídios estatais e de livre acesso a pesquisadores, enquanto os serviços de Internet para o público em geral devem ser deixados nas mãos da TELEBRAS. Isso levou a uma cisão no desenvolvimento da RNP, na qual a Rede Rio (a rede de instituições acadêmicas da cidade do Rio), operando a ligação internacional financiada pelo governo federal do Rio para os Estados Unidos, dissociou-se institucionalmente do consórcio RNP. O AlterNex foi pego no meio dessa polêmica, pois utilizava o sistema carioca por não ser uma rede estritamente acadêmica e cobrar por seus serviços. A situação se agravou a tal ponto que o Ibase teve que renunciar a sua participação na Rede Rio e o AlterNex teve que redirecionar seu tráfego de Internet para São Paulo. Curiosamente, a ligação internacional de São Paulo é operada e financiada pela FAPESP (o equivalente paulista da FAPERJ).

Uma questão importante da controvérsia é se partes da Internet devem ser subsidiadas com base na natureza profissional de seus usuários ou no tipo de aplicativos que estão sendo executados na rede. A Rede Rio parece pensar que os pesquisadores deveriam ter acesso gratuito à Internet (ou seja, com custos cobrados de todos os contribuintes) apenas porque são pesquisadores, não porque estão realizando experimentos de rede que exigem características especiais que seriam prejudicadas se o tráfego tinha que ser compartilhado com outros usuários. Assim, não há restrições quanto ao uso generalizado dos serviços de internet pelos pesquisadores da Rede Rio, que assim podem ser clientes dos serviços de internet (comerciais ou não) gratuitamente como qualquer usuário pagante de outras redes.

Claramente, a abordagem para subsidiar o acesso à Internet e a RNP está trabalhando no desenvolvimento de backbones de aplicativos especiais, enquanto o GCIB está planejando um processo de redução contínua do subsídio federal do backbone Internet Brasil que deve se tornar autossustentável (baseado em valores de backbones cobrados pelos provedores de serviços de Internet) nos próximos anos. Por outro lado, está sendo elaborado em conjunto pelos Ministérios da Ciência e Tecnologia e das Comunicações um decreto que estabelece critérios para a redução dos custos das linhas alugadas de Internet para fins educacionais e de pesquisa, o que volta a colocar a questão do uso adequado dos subsídios natureza das aplicações versus a da comunidade que recebe esses benefícios.

Durante o ano de 1995, o GCIB coordenou a implantação do maior backbone de Internet no Brasil, o internet Brazil backbone, projetado e operado pela RNP, com link de 2 Mbit/s para os Estados Unidos (de São Paulo, financiado e operado pela FAPESP) e nove links interestaduais a 2 Mbit/s. Em 1996, estão sendo instalados mais dois links de 2Mbit/s para os Estados Unidos (no Rio e na capital federal, Brasília). Pontos de presença do backbone da Internet Brasil estão sendo abertos para provedores de serviços de Internet à medida que são ativados oficialmente em diversas capitais.

INICIATIVAS PARA DEMOCRATIZAR O ACESSO À INTERNET

De maneira geral, a postura adotada pela RNP e consolidada com a criação do GCIIB (do qual um representante do IBASE é membro) continua garantindo o apoio a iniciativas comunitárias como o AlterNex. O Ibase, juntamente com diversas outras organizações não-governamentais que trabalham com os Grupos de Trabalho do GCIB, estão estudando e buscando implementar diversos projetos que estimulem a democratização do acesso à Internet. Entre estes estão:

  • Fortalecimento de gateways UUCP nacionais para serem utilizados por pequenas BBSs ao menor custo possível (atualmente, o AlterNex é um gateway UUCP para mais de 130 BBSs no Brasil), descentralizando assim serviços básicos de e-mail para acesso local a custo baixíssimo

  • Desenvolvimento de centros comunitários de acesso onde os usuários que não podem pagar seu próprio computador tenham um endereço de e-mail na Internet

  • Patrocínio de projetos especiais para deficientes físicos (como um bem-sucedido projeto de interfaces de usuário da Internet para cegos em desenvolvimento por pesquisadores universitários de São Paulo e do Rio)

  • Disponibilizar conhecimento técnico para organizações comunitárias que planejam desenvolver acesso local e serviços de informação, freenets e assim por diante

  • Organizações de treinamento e suporte para desenvolver seus serviços de informação pública usando WWW e tecnologias de conferência eletrônica

  • Desenvolver aplicações especiais de "intranet" utilizando a tecnologia da Internet para tornar mais eficaz o trabalho de organizações sem fins lucrativos pois podem ajudar a democratizar efetivamente o acesso aos serviços básicos de rede.

Na verdade, os recursos podem vir de poucas fontes (através de legislações especiais como a Lei 8.248 e recursos de agências multilaterais como o Banco Mundial), o que reforça a possibilidade de desenvolvimentos interessantes em termos de projetos-modelo de redes sociais em diversas áreas nos próximos poucos anos.

PARA MAIS INFORMAÇÕES

Mais informações sobre o IBASE podem ser obtidas em https://ibase.br

Detalhes sobre o trabalho do Comitê Gestor da Internet Brasil estão disponíveis em https://cgi.br

Informações sobre a APC estão disponíveis em https://apc.org

BIOGRAFIA (1996)

Carlos Alberto Afonso formou-se em engenharia naval pela Universidade de São Paulo e é mestre em economia pela York University (Toronto, Canadá), onde cursou o doutorado em Pensamento Social e Político. É co-fundador e atual diretor técnico do IBASE, e membro da Internet Brazil Steering Comitê.