Idas e voltas... (2004)

C.A.Afonso – 26-03-2004

Em primeiro lugar, alguns números redondos. O fim de março (ou começo de abril) deste ano está a 40 anos do golpe militar contra o governo de João Goulart em 1964. Em 1974, exilado no Canadá, comecei a trabalhar em organizações sem fins de lucro da sociedade civil e em abril completo 30 anos de trabalho com as ONGs. Saí do Brasil por pressão da ditadura em 1970 e fiquei 10 anos no exílio (Chile, Panamá e Canadá), voltando em 1980, para fundar o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) com o companheiro Betinho. A ditadura durou formalmente 20 anos. Nossa esperança é que nada parecido volte, nunca mais. 

O exílio representou para a imensa maioria um choque emocional, cultural, político e profissional. Em vários casos, no entanto, para a ditadura, a perseguição política que levou ao exílio acabou sendo um tiro pela culatra. Muitos conseguiram aperfeiçoar-se profissionalmente, encontraram espaço para trabalhar no exterior pela volta da democracia no país, e puderam voltar, muito mais preparados, e seguir participando ativamente da reconstrução democrática no Brasil. 

A volta, no entanto, especialmente a que ocorreu logo depois da anistia de 1979, não foi o que muitos exilados esperavam. Se foram recebidos com o óbvio carinho dos familiares e amigos mais chegados, enfrentaram várias barreiras para encontrar seu espaço de trabalho ou mesmo de atividade política. Uma das barreiras era expressa pelo medo da ditadura ainda em existência apesar da anistia. Betinho foi um dos companheiros de exílio que enfrentou essa rejeição por medo, e só começou mesmo a trabalhar quando conseguimos recursos para criar o Ibase. 

Também foi, no caso, uma rejeição que acabou tendo uma boa consequência -- o trabalho do Ibase ao longo dos anos mostrou-se pioneiro em vários aspectos, envolvendo o lançamento da Internet no Brasil, o trabalho de democratização da informação e acompanhamento crítico das políticas de governo, e culminando com o lançamento do Movimento pela Ética na Política e da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. Muitos não conhecem o Ibase, e fora do Rio de Janeiro muitos não conhecem o Betinho, mas a maioria dos brasileiros sabe o que foi e o que é a Ação da Cidadania, também conhecida como a "Campanha Contra a Fome", da qual derivaram-se várias iniciativas em praticamente todas as cidades brasileiras, como a prática de arrecadar um quilo de alimento em eventos, o Natal Sem Fome e outras. 

Para mim, o exílio significou também encontrar a companheira de vida. Cleyde e eu nos conhecemos no Chile em 1970. Em 1973 o golpe de Pinochet nos forçou a novo exílio -- escapamos com sorte da fúria assassina dos militares chilenos, e nosso filho Rodrigo acabou nascendo no Panamá, "em trânsito", em novembro daquele ano, depois de ter sido cutucado em nossa casa, dentro do útero da mãe, pelo fuzil M-16 de um militar chileno poucos dias depois do golpe de 11 de setembro. Costumo lembrar a ele que já conheceu a repressão das ditaduras na barriga da mãe. 

Conseguimos refúgio no Canadá, onde retomei os estudos e participei da fundação de uma ONG de brasileiros em Toronto, a "Brazilian Studies", com Betinho (também exilado no Canadá) e vários outros companheiros e companheiras. A ONG acabou recebendo contribuições de companheiros de vários outros países latino-americanos, e tornou-se a "Latin American Research Unit", LARU, absorvida mais tarde pela Universidade de York ao criar o "Center for Research on Latin America and the Caribbean" (CERLAC). 

O Canadá para nós representou a "descompressão" depois da ditadura brasileira e da ferocidade e carnificina do golpe de Pinochet. Lá ficamos seis anos, e hoje também temos a cidadania canadense. Nosso agradecimento ao povo e governo do Canadá só pode ser expresso pelo fato de que tenho tanto orgulho hoje de ter a cidadania canadense como de ser brasileiro, paulista de nascimento e juventude, carioca e flamenguista de coração. 

"Para que voltar?", perguntava uma amiga querida canadense. "Vocês têm trabalho, tranquilidade, bons salários, todo um futuro aqui no Canadá". Ela nunca entendeu porque decidimos voltar ao Brasil, em plena ditadura. Ela nos visitou muitos anos mais tarde, viu o trabalho que tivemos a felicidade de desenvolver no Brasil, primeiro com o Ibase e depois com os companheiros e companheiras da RITS, e finalmente entendeu por que voltamos.