Infoinclusão no Brasil: os desafios a enfrentar e o papel das ONGs (2000)

Carlos A. Afonso -- 12-setembro-2000

Os brasileiros vivem um importante momento de transição no desenvolvimento das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs). É um momento marcado por janelas de oportunidade e desafios únicos, principalmente para a definição dos caminhos a seguir rumo à infoinclusão (garantia de acesso informado às TDICs para todas as famílias brasileiras).  

Em primeiro lugar, um rápido diagnóstico da situação. Este é um momento em que o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) propõe o desenvolvimento do Programa Sociedade da Informação (PSI) -- uma proposta ampla que atinge todos os setores sociais e econômicos. Chega atrasado em relação aos países mais avançados, e até agora pode ser resumido em um documento com um bom diagnóstico (o Livro Verde). Em todo o caso, revela uma intenção de tratar o desenvolvimento das TDICs de um ponto de vista holístico, tendo em conta que, pelo menos para a integração social na “nova economia”, é necessário “info-incluir”.  

É também o momento em que o FUST (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações) é regulamentado. Aberto por alguns dias e quase sem publicidade para consulta pública antes da assinatura do presidente da República, o regulamento do FUST é crucial para o futuro da infoinclusão no Brasil. 

Proposto como projeto de lei por um deputado federal do Partido dos Trabalhadores em 1997 e finalmente aprovado em 2000 (um atraso causado pelo lobby das operadoras de telecomunicações), esse fundo tem como principal fonte de recursos um por cento da receita bruta das operadoras de serviços de telecomunicações no país. Cálculos conservadores indicam que o FUST pode dispor de cerca de US$ 600 milhões por ano para a universalização dos serviços no Brasil.  

Para se ter uma ideia do que significa, se metade dos recursos do FUST fosse investido anualmente em pelo menos um telecentro comunitário multiuso para cada 25.000 pessoas no Brasil (ou seja, pelo menos 6.400 telecentros), isso possibilitaria instalar todos esses telecentros em até dois anos, além de mantê-los, treinar pessoal operacional, instrutores, desenvolver projetos de valor agregado na rede de telecentros etc. etc. Estamos a falar de telecentros cuja dimensão média permitiria formar 20 pessoas em simultâneo e permitir simultaneamente o acesso à rede a mais 20 pessoas, ligadas aos backbones de Internet a um mínimo de 128 kbit/s.  

Essas oportunidades se contrapõem aos desafios decorrentes do fato de o Brasil ser, em praticamente todos os setores de atividade, um dos países mais injustos do mundo. Os seguintes pontos merecem destaque:  

1. O desafio da infoinclusão é a resolução de problemas de infraestrutura, capacitação, capilarização dos serviços, participação nas decisões e acesso amplo e igualitário aos conteúdos disponíveis ou que serão oferecidos pela Internet.  

2. Como no caso de outros recursos brasileiros, a infraestrutura básica para a disseminação da Internet é restrita aos principais municípios e prioriza as camadas mais ricas da sociedade, utilizando o acesso individual como paradigma de uso - o que reproduz nossa péssima política de transporte urbano. Assim como esta política é feita para quem tem carro, nossas "autoestradas da informação" são feitas para quem tem microcomputador, linha telefônica e dinheiro para pagar os impulsos da ligação telefônica e para o provedor de internet - ou seja, para os mais ricos.  

3. Dos 5.507 municípios brasileiros, menos de 300 (ou seja, menos de 6%) possuem a infraestrutura mínima necessária (POPs, ou pontos de presença locais das espinhas dorsais) para que os serviços de acesso local possam ser instalados. Os cinco milhões de internautas no país representam menos de 3% da população.  

4. O Brasil ocupa de longe a última posição entre as nove maiores economias do mundo em número per capita de usuários, computadores pessoais, terminais telefônicos e servidores de Internet (hosts). Os circuitos que conectam os provedores de serviços à Internet estão entre os mais caros do mundo, inviabilizando pequenos negócios de provedores de serviços, principalmente em regiões menos abastadas.  

5. Não existe no país um plano nacional para implementar mecanismos efetivos e abrangentes para democratizar o acesso, como telecentros em áreas, cidades ou bairros com menos recursos, conexão massiva de escolas públicas, programas básicos de treinamento em uso e gestão do meio ambiente, pesquisa sistemática sobre alternativas de conexão de baixo custo, etc. Como vimos em nosso exemplo acima, um amplo programa que começa a mudar essa situação poderia ser feito com menos de 0,2% do PIB, mas não há sequer estudos de viabilidade propostos para isso no PSI formulado até agora.  

6. Dada a nossa história de 500 anos de privilégio aos já privilegiados, não se deve esperar nenhuma mudança significativa nessa orientação se não houver mobilização da sociedade (ONGs, sindicatos, associações, intelectuais etc., ou seja, sociedade civil) para que podemos chegar a um projeto nacional de sociedade do conhecimento. Como em outras formas de exclusão social, cultural, econômica e política, não podemos deixar de lado o grave problema da infoexclusão, que tornará cada vez mais grave o “apartheid” social no Brasil com a “exclusão digital”.  

No Brasil, existem mais de 168.000 organizações sem fins lucrativos registradas formalmente. Isso inclui tudo (desde a construção de associações até grandes fundações e ONGs) e é o que constitui o chamado "terceiro setor" em nosso país. Nossa organização, a Rits (Rede de Informação para o Terceiro Setor, criada em 1997), busca atuar junto a essas organizações (principalmente as que se dedicam a alternativas de desenvolvimento humano, justiça social, educação, saúde, meio ambiente e direitos humanos) buscando potencializar o uso da Internet como ferramenta de democratização da informação e "empoderamento". 

Em sua área, até o momento a Rits é praticamente (e infelizmente) a única iniciativa no Brasil, já que o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, pioneiro da Internet no país) abandonou essa linha de atuação em 1996. Somos uma organização muito pequena para a enormidade do desafio mostrado acima.  

Por isso, buscamos focar nossas ações de forma a fornecer modelos ou exemplos de soluções, e servir de referência para informações e serviços. A Rits hoje busca atuar em cinco áreas:  

   • Informações de referência -- Buscamos construir um portal de referência sobre o terceiro setor e sobre acesso universal, compartilhando experiências de outros países, mantendo e atualizando informações úteis para organizações civis e buscando formas de utilizar este portal como base de informações para todas as demais atividades, além de oferecer serviços de última geração em gestão do conhecimento. Este espaço serve também de apoio à divulgação de redes temáticas de entidades civis.  

   • Pesquisa de modelos de solução para acesso universal -- A Rits busca manter pelo menos um telecentro de referência para testar modelos de solução (tecnologia, autossustentabilidade, capacitação etc.) e pesquisar regularmente tecnologias e práticas de acesso universal no Brasil e em outros países.  

   • Treinamento a distância - A Rits desenvolve um programa de treinamento a distância para uso e gerenciamento de ferramentas da Internet em benefício de organizações do terceiro setor. O meio básico será a Internet, mas o treinamento também utiliza outros meios como correio, fax e até cursos multiplicadores presenciais. As já mencionadas limitações da Internet no Brasil indicam a necessidade de encontrar formas criativas de disseminar esse conhecimento por diversos meios.  

   • Espaço ativo de defesa e divulgação de estratégias de info-inclusão -- A Rits desenvolve um programa regular de seminários, conferências, gabinetes, etc., procurando sensibilizar para a info-exclusão, debater alternativas e formular políticas alternativas.  

   • Oferta de serviços de Internet - Muitas entidades civis não se sentem seguras em usar provedores comerciais (há até casos de violação de correspondência por motivos políticos). A intensa concentração capitalista dos serviços de Internet no Brasil eliminou os espaços autônomos de confiança de muitos setores dos movimentos populares. A Rits se mantém como uma alternativa de serviços ao terceiro setor, buscando oferecer o que há de mais moderno em serviços ao menor custo possível. Hoje, mais de 100 portais e sites de entidades civis brasileiras de diversas regiões do país estão nos servidores da Rits.  

O futuro da atuação da própria Rits contribuirá para especificar cada vez mais esses polos de atuação e orientar sua estratégia. E, acima de tudo, servir de modelo para que outras iniciativas semelhantes possam surgir no país.

Em particular, é essencial que tenhamos formas de trabalhar em rede internacional para a troca de conhecimento sobre os temas aqui mencionados, compartilhando tecnologias, experiências, quadros, etc., e buscando projetos comuns para iniciativas concertadas regionalmente. Isso inclui, entre outros:  

   • troca de experiências concretas em serviços e na criação e gestão de infraestrutura, por meio de documentos online ou impressos, palestras, conferências, etc;  

   • troca de contatos importantes para apoiar projetos em cada país;  

   • intercâmbio de quadros, que podem ficar algumas semanas participando de projetos em outros países, potencializando a disseminação do conhecimento de experiências concretas;  

   • formulação de projetos e programas regionais comuns que possam ser apoiados por agências internacionais de desenvolvimento "sem amarras", particularmente na busca de soluções comuns para reduzir ou eliminar a "exclusão digital".