Como as ONGs, com a ajuda da Internet, bloquearam o AMI (1998)

Carlos A. Afonso -- 01-maio-1998

Em 1995, alguns dos "donos do mundo" - componentes daquele grupo dos 29 países que integra a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) -, ainda bêbados da comemoração maior do fim do século (a desintegração do sistema socialista da Europa Oriental) e seguros que podem agora, mais ainda, fazer o que quiserem com o planeta e todos os seus seres, imaginaram uma carta diabólica - uma declaração de direitos mundiais das empresas transnacionais, em que os deveres estariam com os Estados e com as populações. Principalmente dos países que não são membros da OCDE.  

Nascia a proposta do AMI - Acordo Multilateral sobre Investimentos. Os detalhes são escabrosos. Em alguns casos, como o do Canadá (uma democracia parlamentar), os funcionários do governo esconderam os detalhes da proposta do próprio Parlamento. Na sua forma atual, o AMI dá às transnacionais o poder de regular o que os governos podem ou não fazer nos campos legal, político, social, econômico e ecológico, que possam afetar a liberdade de ação das transnacionais. Para completar, o AMI estende esses direitos predatórios até mesmo a universidades e centros de pesquisa dos países ricos. Quanto ao governo brasileiro, não sabe de nada sobre este assunto, a não ser pelos jornais - o Brasil não é membro da OCDE.  

É claro que um acordo com esse alcance gerou divergências mesmo entre os poderosos. Os EUA, Austrália e o Canadá, por exemplo, impuseram limites para a validade do AMI em seus países ao mesmo tempo que exigiram que continuasse valendo para suas transnacionais em outros países. Em todo caso, o objetivo era assinar o acordo em abril, tornando-o uma espécie de lei internacional do grande capital, à qual, por um caminho ou outro, todos os países teriam de submeter-se.   

De seu lado, muitas entidades civis no mundo articulavam-se para denunciar a proposta do AMI. No entanto, nem as ONGs nem a maioria dos governos do mundo sabia dos termos do mesmo. Até que, no início de 1998, a primeira versão completa da proposta vazou para uma ONG canadense (O Conselho dos Canadenses), que prontamente publicou o documento em sua página na Internet. Rapidamente, via Internet centenas de entidades em várias regiões do mundo reproduziram o documento e intensificaram suas campanhas contra o AMI em seus países, reunindo-se com parlamentares, ministros e imprensa. A Rede do Terceiro Mundo, através de seu servidor WWW em Singapura, preparou estudos e um grande repositório de informações sobre o AMI, imediatamente disseminados por todo o mundo.   

O resultado? Absolutamente inesperado para os poderosos, e até mesmo para as entidades civis acostumadas a lutas intensas com poucos resultados. A assinatura do AMI está adiada em pelo menos um ano, dando tempo para que a mobilização continue para que mais essa proposta indecente seja jogada de vez na lata de lixo.   
Sem a Internet, teria sido impossível uma mobilização tão intensa e rápida, que envolveu somente no Canadá mais de 500 entidades, além de milhares de outras mundo afora. E isso tudo traz algumas lições. Este episódio mostra a importância de preservar a Internet como um espaço de acesso democrático internacional. Mostra ainda como as ONGs não podem ignorar o mais abrangente sistema público de comunicação extraterritorial já criado.   

Mostra finalmente que governos e grandes empresas podem odiar, amar ou mesmo respeitar as ONGs - mas o episódio do AMI revela que já não podem ignorá-las como linhas eficazes de defesa dos direitos dos excluidos.

Enlaces sobre o assunto:  
Conselho dos Canadenses: https://canadians.org/  
Rede do Terceiro Mundo: https://www.twn.my/   
OCDE/OECD: https://www.oecd.org/

(*) Carlos A. Afonso é co-fundador do IBASE e do primeiro serviço Internet brasileiro- o AlterNex - É também presidente da Associação para o Progresso das Comunicações (APC).