Razões de Estado (1995)

Razões de Estado estão presentes como as justificativas últimas para imposição de políticas que interessam a minorias, enfeitadas com argumentos de "interesse público", pelo menos desde que Bodin inventou, no século 16 (e desde então se pratica), o Estado-nação. 

Vejamos um exemplo atual na área de saúde pública. Uma dose de fator oitavo (essencial para o controle de hemorragias em hemofílicos) requer duas mil doações de sangue e custa US$1 mil. Está disponível na maioria dos países, justamente subsidiado pelos seus governos. Uma dose de vacina de cólera custa US$1 e é comprovadamente eficaz em 85% dos casos. Mas, não pode ser utilizada em países do Terceiro Mundo (onde está a cólera), por razões de Estado-- a OMS não aprova o uso da vacina (e quando a OMS não aprova, os governos do Terceiro Mundo não a utilizam), argumentando que é ineficaz ou custa muito caro! 

Mas, há fortes indicações que a verdadeira razão seria que a burocracia dos organismos internacionais envolvidos no processo decisório de homologação da vacina decidiu que a vacinação em áreas de crise epidêmica desmotivaria os governos locais a realizarem os projetos de saneamento básico que contribuiriam para uma resolução estrutural do problema. Enquanto a resolução estrutural não vem, morrem milhares de homens, mulheres e crianças, de Ruanda ao Peru. 

Tal como na saúde, razões de Estado frequentemente incompatíveis com interesses sociais impõem decisões e fixam políticas. As vítimas são as maiorias que não têm grupos de interesse poderosos o suficiente para fazer convergir o interesse social e as políticas e ações oficiais. Isso ocorre em todos os campos em que interesses econômicos de minorias poderosas (sindicatos patronais, sindicatos de elites de funcionários, cartéis e organizações econômicas privadas) buscam perpetuar situações de privilégio relativo em detrimento (deliberado ou não) das maiorias desorganizadas. 

Assim, o corporativismo de minorias (seja patronal ou de funcionários) trabalha para impor regras à sociedade a partir de razões de Estado sacramentadas em leis. E isso justifica a luta por privilégios funcionais em empresas estatais, por leis que impeçam pagamento social  justo pelo uso de um bem naturalmente comum-- a terra--, por tarifas diferenciadas, por rendimentos privilegiados impossíveis de serem generalizados socialmente, etc. 

Que interesse social amplo satisfaz a razão de Estado que levou, por exemplo, à abertura de importações de automóveis, beneficiando centralmente o cartel de montadoras já instaladas no país em detrimento da continuidade da produção local? A perda de recursos decorrente dessa política (apenas para satisfazer uma classe média alta ávida de mostrar ao vizinho seu importado novo e com isso gerar lucros astronômicos para as montadoras-- e, que diabo, afinal, ministros e congressistas também sonham com esses carros), que poderiam ser alocados para as necessidades sociais de 30 milhões de miseráveis, não é compensada pela arrecadação de impostos que poderiam ser utilizados para aquelas necessidades sociais de emergência-- supondo que esses impostos fossem alocados no combate efetivo à exclusão social. 

Pratica-se aqui uma abertura rejeitada nos países-sedes dos principais interessados nisso (na nossa abertura), como o Japão e outros-- nesses países, neoliberalismo virou, mesmo, "nhem-nhem-nhem". Por quê nós, que temos uma desigualdade social de ponta, não temos uma política de ponta para resolvê-la? Pelas razões de Estado que privilegiam, em última instância, interesses de minorias. 

Há uma mudança ética a fazer na prática do Estado e dos grupos de interesse. Tal como meu professor canadense, C .B. McPherson, ensinava a diferença crucial entre o populismo verdadeiro e o falso-- sendo o primeiro o movimento que defende efetivamente os interesses das maiorias e o segundo o que apenas manipula essas maiorias com promessas falsas--, há que buscar a diferença entre o corporativismo eticamente aceitável e o que apenas obedece às leis do mercado (transformando por exemplo estatais que deveriam ser públicas em reféns de interesses privados sindicais ou empresariais). 

Essa busca é uma exigência moral e ética em qualquer nação que busque a democracia efetiva, e principalmente em um país de contrastes sociais mundialmente indecentes como o nosso.