Vigilância da rede e o divisor de águas de Snowden (2013)

Vigilância da rede e o divisor de águas de Snowden[1] 
Carlos A. Afonso -- outubro 2013

Em seu interessante texto, Bruce Schneier[2] compara as diferentes influências que indivíduos, grupos, corporações e governos têm sobre a Internet à medida que ela evolui, e suas consequências para a ação e controle político, usando uma espécie de comparação isomórfica com uma sociedade feudal. Um aspecto crucial dessa alavancagem é algo que tem sido prática de governos de vários países, seguindo os passos dos Estados Unidos, há décadas: a vigilância em nome da segurança nacional. 

De repente, a partir das revelações de Snowden, isso tornou-se um motivo de preocupação onipresente -- pessoas e governos parecem descobrir que há vigilância generalizada usando telecomunicações e redes de Internet, e que não apenas os metadados de qualquer coisa que nós (cidadãos e instituições de qualquer país, em qualquer lugar) fazem na Internet, mas também o próprio conteúdo de nossas transações (seja um streaming de vídeo, uma chamada VoIP, uma transação de e-commerce ou apenas um post ou uma visita a um serviço de rede social) estão sendo monitorados e espiados. 

Ainda mais, essa coleta sistemática de informações é feita sob contrato entre agências de inteligência e operadoras de telecomunicações, bem como grandes provedores de aplicativos de Internet, com tal difusão que torna o evento de escuta telefônica da rede NSA-AT&T de 2006 relatado pela EFF um pouco mais do que uma gota no oceano[3]. 

Os governos de muitas nações tornaram-se os principais usuários da Internet para uma variedade de serviços públicos. A Estônia é um bom exemplo desse uso para permitir serviços de governo eletrônico. Por outro lado, como governantes dentro de suas fronteiras geopolíticas, eles estão cada vez mais exercendo sua influência regulatória, legislativa ou repressiva para impor controles e vigilância em nome da segurança nacional. 

As recentes revelações da NSA estão sendo usadas oportunisticamente pelos governos para propor decisões que equivalem a nada menos que vigilância para supostamente proteger seu povo da vigilância. Na esteira dessas revelações, algumas autoridades brasileiras de alto escalão estão propondo que o regulador de telecomunicações (Anatel) assuma literalmente a governança da infraestrutura lógica da Internet do país, e a agência já está considerando regras específicas nesse sentido. As subsidiárias brasileiras das cinco empresas transnacionais de telecomunicações que controlam as principais espinhas dorsais do país estão até pedindo ao governo que entregue à Anatel a administração de nomes de domínio ".br" e endereços IP. 

Desde 2011, esses setores do governo, em aliança com o oligopólio das telecomunicações, lutam para anular uma decisão governamental de 1995 (Norma nº 4) que estabeleceu a Internet como um serviço de valor agregado além do alcance das leis e regulamentos de telecomunicações. Isso significaria simplesmente esquecer todo o processo histórico de construção e consolidação de um sistema pluralista de governança da Internet, amplamente considerado internacionalmente como uma conquista excepcional. De fato, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), se esses setores forem bem sucedidos, seria reduzido a uma comissão consultiva ou apenas extinto por decreto. 

Ao mesmo tempo, as principais economias desenvolveram redes paralelas mundiais avançadas, com gateways para a Internet, para executar serviços "protegidos". Como um exemplo, as estimativas mostram que, na esteira da crescente dependência das forças armadas dos EUA em veículos de controle remoto ("drones") para conduzir suas guerras em escala planetária, cerca de 40 países estão fazendo o mesmo, e esses sistemas funcionam em redes protegidas. também utilizando as mesmas tecnologias de conexão e transporte de dados da Internet. Redes paralelas semelhantes são implantadas para uma variedade de funções de escuta telefônica. 

Como o professor Milton Müller afirmou em um artigo de 2012, "[as] maiores ameaças à liberdade na Internet hoje não vêm de organizações intergovernamentais. Elas vêm de governos nacionais com mecanismos institucionais para regular, restringir, vigiar, censurar e licenciar fornecedores de Internet e usuários"[4]. 

No mesmo artigo, Müller também afirma que "foi a Internet - a capacidade de conectar computadores em rede além das fronteiras, livre de controles e permissões do estado-nação - que abriu esse novo mundo [de comunicações globais] para nós". Sim, a Internet abriu um novo mundo de comunicação e integração, mas não atravessou fronteiras geopolíticas sem ter que superar diversas barreiras governamentais. Em vários países, foi necessário um significativo lobby pró-Internet para contornar barreiras legais e regulatórias, em vários casos confrontando monopólios estatais de telecomunicações, impondo taxas absurdas sobre usuários ou equipamentos de rede, ou simplesmente proibindo a nova rede de ser estabelecida mesmo para fins acadêmicos propósitos. 

No Brasil o próprio protocolo TCP/IP era ilegal (por regra o monopólio estatal de telecomunicações permitia apenas os padrões OSI/ISO) e assim permaneceu formalmente até o processo de privatização no final dos anos 90, embora os primeiros enlaces  internacionais permanentes da Internet começassem a operar sob a proteção de um acordo de país-sede com a ONU para a conferência UNCED 92. 

Há um aspecto das realizações impressionantes descritas pelo presidente da Estônia, Toomas Ilves[5], em relação ao desenvolvimento da Internet na Estônia, que permanece indefinido. Como seu país aderiu à OTAN antes mesmo de se tornar membro da União Européia e é membro da OSCE, seria interessante saber como ele concilia sua infraestrutura excepcional de segurança cibernética e governança eletrônica com a proteção de seu próprio povo contra a invasão generalizada de privacidade praticada por órgãos governamentais, em especial a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos.

[1] Publicado em Mind , nº 6, Berlim-Bali: outubro de 2013, pp.37-38. 
[2] Bruce Schneier, “Power in the Age of the Feudal Internet”, Mind , op.cit., pp.16-20.
[3] https://www.eff.org/cases/hepting
[4] https://www.sfgate.com/opinion/article/Greatest-threat-to-Internet-governments-3723621.php#page-1 
[5] Toomas Hendrik Ilves, “Cybersecurity: A View from the Front”, Mind , op.cit., pp.14-15.