[extraido da introdução ao livro - outubro de 2005]
Autores: Carlos A. Afonso, Internet Governance Project, Marcelo Sávio, Henrique Luiz Cukierman, Ivan da Costa Marques
Depois que alguns dos capítulos deste livro já estavam prontos, em outubro de 2005 várias iniciativas de parlamentares dos EUA demonstraram o apoio do Congresso à posição dos EUA sobre o controle do sistema mundial de nomes de domínio da Internet. No dia 18 de outubro, uma das propostas de resolução conjunta (Senado e Câmara dos Representantes) estabelece:
“(1) É da incumbência dos Estados Unidos e outros governos responsáveis o envio de sinais claros ao mercado que a atual estrutura de supervisão e administração do serviço de nomes de domínio e endereçamento da Internet funciona, e continuará a oferecer benefícios tangíveis a usuários da Internet em todo o mundo no futuro; e (2) portanto, o servidor de zona raíz autorizativo deveria permanecer fisicamente localizado nos Estados Unidos e o Secretário de Comércio deveria manter supervisão sobre a ICANN de modo que a ICANN possa continuar a administrar bem a operação cotidiana do sistema de nomes de domínio e endereçamento da Internet, permanecer à disposição de todos os interessados da Internet mundialmente, e ademais cumprir sua missão técnica central.”1
Uma resolução, mesmo aprovada formalmente, não tem força de lei, mas caracteriza uma posição comum do Congresso e do governo dos EUA a respeito do futuro da governança global da infra-estrutura lógica da Internet (as funções de coordenação e administração de nomes de domínio e números IP hoje realizadas pela ICANN): a real globalização da ICANN, deixando portanto de estar subordinada a um só governo, está fora de questão.
Isto consolida uma polarização entre os EUA e alguns de seus aliados, por um lado, e a União Européia e alguns outros países (entre os quais o Brasil), por outro, na discussão da governança global da Internet que deve culminar na segunda Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI), em Túnis, de 16 a 18 de novembro de 2005. De fato, a União Européia tem alertado que essa polarização pode levar a uma quebra do paradigma atual centralizado de administração da infra-estrutura lógica.
Tecnicamente é possível estabelecer várias “Internets” operando de modo independente, e que se relacionam através de “pontes lógicas” – é até mesmo possível fazer isso sem que o usuário final perceba qualquer inconveniente, exceto talvez por uma inesperada abundância de novos nomes de domínio globais. Afinal, o mais importante é que todas as redes (e lembremos que a Internet sempre foi uma rede de redes) usem a mesma lógica de endereçamento por números IP. O resto é uma questão de convenção da mnemônica entre números e nomes. Há várias alternativas em teste, indo de redes autônomas (e interligadas por “gateways”) a formas de duplicar o servidor DNS mestre de modo que possam existir servidores alternativos de livre escolha de qualquer rede fora do alcance do governo americano – permitindo, por exemplo, que um domínio eventualmente eliminado nos servidores raíz sob controle dos EUA possa ser mantido em uma raíz alternativa.
Politicamente, no entanto, isso seria um desastre, porque colocaria em risco a vitoriosa combinação de um sistema de rede em que, se o endereçamento é coordenado centralmente, há uma propagação mundial livre, horizontal e sem barreiras causadas por essa coordenação central. Preservar essas características em um cenário de governança global, transparente, democrática e pluralista é o grande desafio da CMSI. Claro que isso não significa que a inovação tecnológica não venha a criar um novo paradigma de endereçamento que seja descentralizado e que venha a substituir o atual DNS, permitindo muito mais flexibilidade e mantendo as características de universalidade atuais.
A posição de efetivamente globalizar a ICANN e criar uma estrutura internacional de governança que contemple também vários outros temas que afetam a Internet (que vão do spam e do phishing aos termos de custeio da conexão entre países, do e-comércio à liberdade de conhecimento) foi reforçada pelo relatório do Grupo de Trabalho sobre Governança da Internet (GTGI), criado pela ONU por resolução da primeira CMSI, em Genebra (dezembro de 2003), entregue a Kofi Annan em julho de 2005.
Entre outras preocupações, todo o sistema de endereçamento está baseado em um conjunto de 13 servidores2, dez dos quais em território americano (inclusive o servidor mestre, onde reside o único arquivo de dados de domínios de primeiro nível globais e de países que pode ser modificado). A administração do sistema é feita por uma entidade civil sem fins de lucro estabelecida na California, autorizada pelo Departamento de Comércio, em conjunto com uma empresa privada – a Verisign –, e portanto sujeita às leis deste estado e às leis federais dos EUA. O relatório do GTGI recomenda enfaticamente que um mecanismo global de governança da rede não pode estar subordinado a nenhum governo em particular, mas sim a uma estrutura internacional de aconselhamento e supervisão com participação de todos os governos e outros grupos de interesses.
O impasse está estabelecido. A sociedade civil organizada que tem participado intensamente desse debate procura posicionar-se defendendo a criação de um mecanismo global que seja sobretudo democrático, transparente e pluralista – características que não correspondem no seu conjunto à prática das agências da ONU – e de algum modo trate de todos os componentes que requerem governança, não apenas de nomes e números.
Este livro procura oferecer uma referência histórica e analítica para o acompanhamento desse debate, que certamente não terminará em Túnis. Além de uma excelente revisão histórica do processo de governança que resultou na ICANN (Marcelo Sávio, Henrique Luiz Cukierman e Ivan da Costa Marques), trata em detalhe das discussões da governança no contexto da CMSI (Carlos Afonso) e apresenta uma proposta de transição para a governança mundial da infra-estrutura lógica (Internet Governance Project). Apresenta ainda uma descrição do sistema brasileiro de governança da Internet e uma descrição da proposta brasileira que estará sendo discutida em Túnis de 16 a 18 de novembro de 2005.
A Rits agradece a colaboração dos autores para esta publicação inaugural de seu novo Núcleo de Pesquisa, Estudos e Formação (NUPEF).
Carlos A. Afonso
Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2005
1O texto completo da resolução está em http://www.lextext.com/HR268.htm.
2 A tecnologia DNS atual impõe esse limite no número de servidores. No entanto, uma tecnologia paralela conhecida como “Anycast” permite que vários espelhos possam ser vinculados a qualquer dos 13 servidores. Com essa tecnologia, muitos países mantém em seus territórios servidores-espelho “Anycast”, eliminando assim a necessidade de computadores do país terem de consultar qualquer dos 13 servidores centrais para o referenciamento de nomes e números.