Minha proposta aqui é apresentar uma visão histórica bem resumida de como uma conferência de grande porte da ONU teve uma interseção com desenvolvimentos paralelos de redes liderados por entidades civis em vários países, e no Brasil também imbricada com o início da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, a RNP, que acabou contribuindo decisivamente para a ativação das primeiras conexões dedicadas permanentes do Brasil com a Internet nos Estados Unidos. Em todo o processo está a presença imprescindível de Tadao Takahashi.
Em junho de 2022 celebramos os 30 anos da realização da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED 92 ou Eco '92, ou ainda Rio '92) e os 50 anos da primeira grande conferência da ONU sobre o meio ambiente, em Estocolmo, que recomendou 26 princípios para a proteção do (e interação com) o meio ambiente. Estocolmo '72 teve a adesão de 113 países e teve como um resultado relevante a criação, em Nairobi, do Programa de Meio Ambiente da ONU (UNEP).
Ontem e hoje (2 e 3 de junho de 2022), sob o patrocínio dos governos da Suécia e do Quênia, líderes mundiais e representantes de todos os setores reúnem-se em Estocolmo em um encontro internacional para avaliar resultados da conferência de 1972 e estimular ações que contribuam para um planeta mais saudável e para a prosperidade de todas e todos, nas palavras oficiais da ONU.
A UNCED 92, realizada no Rio de Janeiro, foi a primeira de seu tipo a estimular a chamada participação multissetorial nas discussões, em boa parte em resposta a demandas internacionais dos setores não governamentais. Também foi a primeira a estimular o uso da Internet para a disseminação, troca e administração de informações nos espaços da conferência.
No Rio de Janeiro, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) seguia desenvolvendo, desde 1984, uma iniciativa de estímulo ao uso das redes de computadores, em colaboração com entidades de propósitos similares em vários países de todas as regiões, culminando com a inauguração do Alternex em 18 de julho de 1989 (um serviço de intercâmbio de informações por e-mail e por conferências eletrônicas que já funcionava experimentalmente desde 1987). O trabalho do Ibase nesse campo era parte de uma diversificada mobilização internacional para facilitar a troca de informações entre entidades civis, iniciada em 1984 com apoio do governo canadense, entre outros colaboradores -- conhecida como Interdoc.
Em maio de 1990 as principais entidades dessa rede, incluindo o Ibase, fundaram em San Francisco a Associação para o Progresso das Comunicações (APC). No início da década, sob a liderança de Tadao Takahashi, começava no Brasil a construção do que viria a ser a maior rede de ensino e pesquisa da região -- a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa, RNP, que teve um importante apoio inicial do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
A APC já era conhecida da ONU desde sua fundação. Em 1990, após a Cúpula Mundial sobre a Infância em Nova Iorque, o Fundo da ONU para a Infância criou fóruns eletrônicos de discussão sediados com membros da APC, que foram também utilizados pelo Serviço de Liaison da ONU (NGLS).
A APC nasceu com a missão de buscar meios de atravessar as fronteiras geográficas e as barreiras políticas de comunicação entre os povos -- particularmente na era da Internet que se iniciava. Cuba foi o primeiro exemplo de sucesso do esforço internacional da APC em aferecer alternativas para o acesso às TICs superando o bloqueio imposto pelos EUA desde a derrubada da ditadura de Batista. Ainda em 1990, técnicos do Institute for Global Communications (IGC, EUA), do NIRV Centre/Web (Canadá) e do GreenNet (Inglaterra), todos membros fundadores da APC, procuravam equipamentos que poderiam ser levados para Cuba e que permitiriam o estabelecimento de comunicações com a nascente rede da APC (e também com a Internet) através de chamadas telefônicas internacionais.
Devido à pesada legislação do bloqueio, este trabalho teve que ser feito em sigilo, e as chamadas telefônicas não poderiam ser feitas diretamente aos EUA. Foi assim que no dia 1º de maio de 1991 o projeto Alternex do Ibase inaugurou um serviço experimental de acesso direto a Cuba via DDI, utilizando modems estado-da-arte da época (os incríveis Telebits Trailblazers). O serviço permitia o envio e recebimento de correio eletrônico e listas de discussão utilizando o protocolo UUCP (UNIX-to-UNIX Copy Program), com uma conexão diária entre o Rio e Havana.
Pela primeira vez, uma instituição cubana -- o Instituto de Documentação e Informação em Ciência e Tecnologia, IDICT, através do seu Centro para o Intercâmbio Automático de Informação (CENIAI), podia trocar mensagens com colegas em várias partes do mundo, via APC e via Internet. O CENIAI na verdade já experimentava com redes X.25 desde 1985, mas de modo precário e com tráfego internacional limitado à Europa Oriental através da então União Soviética. O IDICT, tal como o brasileiro IBICT, foi criado com o apoio do PNUD.
O experimento mostrou a viabilidade do uso de chamadas telefônicas internacionais para a troca regular de correio eletrônico (tecnologia que o próprio Alternex utilizava desde sua inauguração oficial para o tráfego de informações com as redes nos EUA, enquanto não chegavam as conexões permanentes com a Internet). Através da conexão do IDICT/CENIAI, dezenas de outras entidades cubanas passaram a trocar mensagens com o resto do mundo.
A velocidade de transmissão de textos chegava a surpreendentes 600 caracteres por segundo entre o Rio e San Francisco, e cerca de 400 caracteres por segundo entre Rio e Havana -- um desempenho excepcional especialmente se lembrarmos que até pelo menos 1995 muitos dos estados brasileiros estavam conectados à Internet a 960 caracteres por segundo. No entanto, o custo elevado das chamadas internacionais tanto do Brasil como de Havana impediram que essa conexão continuasse.
A APC buscou então outras alternativas, via Londres e Toronto, e a partir de 1992 estabeleceu-se um serviço regular UUCP entre o NIRV Centre e o IDICT em Havana, com a discagem sendo iniciada no Canadá -- o que reduziu em 80% o custo das sessões UUCP. Através dessa gateway, estabelecia-se também o tráfego regular de mensagens entre Cuba e a Internet. Em março de 1992, em um ato de coragem, o IGC da Califórnia anunciou oficialmente o serviço regular de troca de mensagens com a Red David, da União de Jovens Cubanos, ligada à Academia Cubana de Ciências.
A conexão UUCP Toronto-Havana, operada e subsidiada pelo NIRV Centre, permaneceu em funcionamento regular até que Cuba finalmente logrou estabelecer conexão direta estável com a Internet a partir de 1997. O último serviço direto da APC com Cuba deixou de operar no início de 1997, e o serviço DNS para Cuba operado pelo NIRV Centre foi repassado no final de fevereiro de 1997 ao CubaNIC, operado pelo CENIAI.
O trabalho do Ibase e da APC no desenvolvimento de redes chamou a atenção do secretário geral da UNCED 92, que convidou o Ibase a participar da elaboração do componente brasileiro da Rede Eletrônica Global (GEN) sendo construida pelo secretariado para a conferência. Isso signifiva montar em todos os espaços da conferência telecentros com computadores em rede conectados à Internet para pelo menos possibilitar a troca de mensagens e arquivos.
A conferência foi realizada em três espaços: o principal no Riocentro, o Fórum das ONGs no Hotel Glória/Aterro do Flamengo e o Centro de Imprensa no Museu do Telefone próximo ao hotel. No final de 1990, uma primeira proposta para estabelecer um sistema efetivo de comunicação de dados no Rio (conhecido pela sigla ISP/Rio) para a conferência foi apresentado pelo Ibase com o apoio técnico de outros membros da APC e da RNP.
O secretariado da conferência concordou com Tadao que seria quase impossível superar as barreiras criadas pela Embratel e teles contra a presença desses seres estranhos a montar redes nos espaços da conferência, e sobretudo contra a introdução dos protocolos Internet no país. Nesse duro diálogo, dividimos as tarefas: Tadao ficou com a parte "do leão" -- convencer os entes de governo a não só aceitar como apoiar o projeto de redes dos três espaços, que veio a ser conhecido por ISP/Rio; a equipe do Ibase ficou com o diálogo com o secretariado, com o apoio decisivo de Janos Pasztor, engenheiro nuclear e diplomata a serviço da ONU, para montar esse componente a ser introduzido no Acordo de Sede entre o governo federal e a ONU.
Conseguimos assim inserir no Acordo de Sede a exigência de enlaces diretos entre os espaços da conferência e a Internet -- algo que contou com o apoio decisivo e imprescindível da RNP, através de enlaces via UFRJ e Fapesp com o Alternex, e conexões dedicadas entre os três espaços, suprida pela Telerj, que colocou à disposição várias linhas telefônicas para o projeto.
O sucesso do ISP/Rio levou a APC a realizar projetos similares para os fóruns das ONGs nas conferências da ONU em 1993 (UNHRC, Viena), 1994 (ICPD, Cairo) e setembro de 1995 (UNWCW, Beijing), com a participação da equipe do Ibase. Parte importante do trabalho dessa equipe ao longo dos anos foi de facilitar troca de informações através do sistema de fóruns eletrônicos da APC sediado no Alternex e outros servidores da APC.
Esse projeto exitoso com a ONU não teria sido possível sem a implacável, ativa e decisiva presença de Tadao em todas as etapas dessa aventura. Na luta pelo apoio das teles Tadao reuniu-se com executivos da antiga Telesp. Depois de explicar exaustivamente o projeto e a importância do apoio das teles para o mesmo, um executivo da Telesp disse a ele: "Entendi. Com essa nova rede você quer acabar com nossos empregos!"
Além de ter sido liderança na concepção e efetivação do CGI.br (o primeiro comitê de governança da Internet de seu tipo no mundo e de certo modo ainda o único) em 1995, de ter lutado pela construção da RNP e tantas outras iniciativas relacionadas ao desenvolvimento das redes no país, Tadao ainda foi crucial na proposta de montar um capítulo brasileiro da Internet Society.
No mesmo ano da UNCED 92 foi criada a Internet Society, a partir do encontro iNet na Dinamarca. Cinco anos depois, Tadao, com a ajuda de Marlon Borba e eu, defendia na COMDEX 1997 a criação de um capítulo brasileiro da entidade internacional.
Mas somente em julho de 2011 conseguimos sacramentar oficialmente o capítulo no Brasil, conhecido pela sigla ISOC-BR. Foi formalizado como associação civil sem fins de lucro registrada em 2012, quando realizamos a primeira assembléia geral. Tadao e Marlon foram os principais redatores das primeiras propostas de estatutos da nova entidade e Tadao foi negociador fundamental para a aprovação do capítulo pela Internet Society.
Faltou dizer que o projeto da Eco '92 foi possível também devido ao forte e diversificado apoio dos governos do Canadá, Holanda e outros, de fundações internacionais, de agências da ONU e de várias empresas que doaram equipamentos e software, como a Sun Microsystems e várias outras -- dezenas de computadores, hubs, modems, impressoras e software, com o apoio do PNUD para internar os equipamentos na Alfândega brasileira, mesmo com a Lei de Informática.
Tadao, companheiro de pelejas, você fará muita falta!