Introdução à versão final para publicação pelo ILDES / FES -- abril de 2002. Texto completo em anexo em PDF.
No início da década de 70, Alvin Toffler escrevia Future Shock[1] – um livro visionário, que não só fazia o balanço da evolução das relações sociais e econômicas mundiais em 500 séculos, como também destacava os efeitos das mudanças provocadas pelo salto tecnológico experimentado pelo que o autor chama de “800a geração” – a geração do próprio Toffler. Nesse período, em que o homem chegou à Lua, as tecnologias digitais e da informação mundial instantânea via satélite começaram a se generalizar de tal forma que as rápidas transformações, de altíssima qualidade, foram se sucedendo de maneira nunca antes presenciada por qualquer outra geração humana precedente em 50 mil anos.
A publicação do livro coincidiu com o advento da base tecnológica da Internet, quando os primeiros sistemas de computadores em rede foram demonstrados pela Advanced Research Projects Agency (ARPA) do Departamento de Defesa dos EUA. Future Shock não faz referência alguma a redes de computadores. Se o autor pudesse prever as espantosas conseqüências do que estava nascendo, dificilmente conseguiria terminar o livro. O fato era naquele momento, e ainda é – para usar expressão bem brasileira – "muita areia para o caminhão" dos futurólogos, mesmo dos mais cuidadosos e brilhantes como Toffler.
Um dos capítulos mais fascinantes do livro é a descrição da explosão de mobilidade humana no que ele chama de "sociedades superindustriais" – Canadá e Estados Unidos, na época, segundo sua visão. Radicalmente avançadas em relação a outras baseadas em produção agrícola ou em indústria pesada tradicional, essas sociedades eram capazes de estabelecer metas de produção de qualquer bem ou serviço em função da disponibilidade de recursos.
Era uma mobilidade física: 20% da população americana mudava de residência a cada ano, motivada pelas perspectivas de ascensão profissional ou mesmo pela imposição de seus empregadores. A possibilidade de realizar transações instantâneas de informação de qualquer tipo, com o nível de segurança desejado – tanto no plano individual como institucional – via redes de computadores generalizadamente disponíveis (pelo menos nos países mais avançados), não era ainda objeto de análise. Em menos de duas décadas, porém, a realidade da Internet atropelaria a “800a geração”.
Ao cruzar fronteiras e derrubar padrões de comunicação hierarquicamente controlados pelos governos, a Internet colocou em pauta a questão de seu controle. Às estruturas bem ordenadas de mando e decisão regidas por leis, a Internet veio contrapor a possibilidade de interação e trabalho cooperativo em rede, em formas tão diferentes e com finalidades tão diversas (de uma compra online à organização internacional de um plano de ação comum) que acabou pondo em xeque vários paradigmas de jurisdição e governabilidade das relações humanas na esfera mundial.
Em sua habitual paranóia, o Departamento de Defesa dos EUA contratou a RAND Corporation para teorizar sobre o assunto. Surgiu assim o conceito de “guerra-em-rede” (netwar), em que a RAND juntou no mesmo saco todos os movimentos civis, organizações do narcotráfico e redes terroristas (segundo o estudo da RAND: “terror, crime, and militancy”), com a finalidade de sugerir contramedidas para anular ou minimizar o poder de ação de movimentos descentralizados face à estrutura piramidal dos governos.[2]
Como o tema da governabilidade da Internet é amplo e complexo, vamos nos limitar aqui a tratar apenas de um aspecto do problema: a gestão da infra-estrutura – que possibilita a interconexão e a livre comunicação entre as centenas de milhões de máquinas da Internet. Consideramos esta questão oportuna e importante pelas seguintes razões:
• Está ocorrendo um processo de reorganização institucional do controle mundial centralizado de todas as rotas de tráfego, nomes de domínio e padrões de protocolos de comunicação. Processo similar desponta no Brasil com a proposta de institucionalização do Comitê Gestor da Internet.
• Esses processos envolvem mecanismos de representação e tomadas de decisão em que o controle social é crucial, pois se trata da gestão da infra-estrutura que afeta a rede como um todo.
• As estruturas de gestão repetem-se a partir de um organismo central, apoiado em organismos regionais e em instituições nacionais; em cada um desses níveis colocam-se as mesmas questões de representatividade, participação e controle social das estratégias de desenvolvimento da Internet.
• O processo acelerado de convergência tecnológica entre os meios de comunicação – telefonia, televisão e Internet deverão trafegar cada vez mais por redes comuns – significa que as políticas públicas de desenvolvimento da infra-estrutura afetarão progressivamente todos os meios de comunicação digital; o controle social sobre essas políticas, portanto, passa a ser ainda mais importante.
• Uma razão final, mas não menos importante: praticamente não há material sistematizado sobre o tema em português.
[1] Toffler, Alvin. Future Shock. Bantam Books, Nova York, 1971.
[2] Arquilla, John e Ronfeldt, David (organizadores). Networks and Netwars: The Future of Terror, Crime and Militancy. RAND Corporation, Washington, D.C., novembro de 2001.