Se há uma coisa que a Internet rapidamente nos ensinou, em seus 30 anos “oficiais” de vida (em 1969 a ARPANET foi contratada pelo Departamento de Defesa para interligar computadores, e a criação de uma rede no final daquele ano marcaria o nascimento da Internet): fazer previsões sobre ela é risco certo de errar, frequentemente para menos.
Dois exemplos recentes ajudam a mostrar isso. Redes de “muito alta” velocidade (para os padrões brasileiros de hoje, pelo menos) seriam da ordem de algumas dezenas de gigabits por segundo (Gbit/s) e se generalizariam somente em dois ou três anos. Um circuito de 1 Gbit/s permite transmitir, digamos, 50 mil páginas de texto por segundo.
As limitações estavam não só nos processadores de sinal como na freqüência do laser que gera o raio de luz e na qualidade da fibra óptica. Dado o crescimento do tráfego Internet no mundo, vários analistas de peso previam um futuro trágico e muito próximo de congestionamento que condenaria a Internet a uma morte pelo menos temporária. Blecautes pavorosos ainda este ano condenariam à histeria milhões de “chatters” e “icqers” (a turma do bate-papo) e levariam à ruina negócios de bilhões.
Os que usam a Internet sabem que nada disso aconteceu – ou pelo menos, quem ficou histérico não foi por isso... Por outro lado, neste mês de novembro circula na Europa o anúncio da espinha dorsal i-21, que, usando uma nova fibra óptica, permitirá transmissão bruta de dados nos circuitos principais da ordem de um petabit por segundo, ou um milhão de gigabits por segundo – digamos, equivalente a 50 bilhões de páginas de texto por segundo! Data de início de operação prevista: maio de 2000. Trata-se de uma rede interconectando 17 países europeus, que deverá ter cerca de oito milhões de quilômetros de fibra. E este é só um exemplo, já que na América do Norte e na Ásia iniciativas semelhantes estão em processo. Todas as previsões sobre capacidade de transmissão dos circuitos Internet estão tendo que ser revistas muito para cima, pelo menos do “lado de lá” do fosso digital. Nós, Brasil, estamos do lado de cá.
Outro exemplo: as estimativas do volume de transações comerciais via Internet falavam em algumas centenas de bilhões de dólares em dois a três anos. Mas neste mês algumas novidades significativas exigem a revisão dessa escala muito para cima. A Ford, em parceria com a Oracle, está lançando um sistema de compras de insumos para sua rede mundial de montadoras – o AutoXchange, que poderá ser utilizado por outras empresas. O mesmo está fazendo a General Motors (em parceria com a Commerce One), lançando o serviço MarketSite. Ao contrário da iniciativa Ford- Oracle, o serviço da GM será utilizado exclusivamente pela empresa. O total estimado de transações por ambos sistemas (que estarão em pleno funcionamento em alguns meses) deverá ultrapassar meio trilhão de dólares anuais, já que todos os fornecedores das duas empresas serão obrigados a usá-lo.
Mas esse volume, se ultrapassa por si só algumas previsões de peso sobre o tamanho mundial do “e-business” nos próximos dois a três anos, é minúsculo se comparado com o início do mercado via Internet de bônus dos governos – o que já vem sendo chamado de “revolução dos bônus eletrônicos”. O marco inicial foi o lançamento do primeiro leilão de bônus municipais pela prefeitura de Pittsburgh, EUA, dia 9 de novembro,totalmente via Internet.
A economia para os governos pode ser de 20% ou mais, e o tamanho desse mercado nos EUA é estimado pela revista Business Week em mais de 13 trilhões de dólares. Algumas projeções estimam que mais de 50% desse mercado estará totalmente na Internet em 2001, mas, como já vimos, esta previsão também pode ficar aquém da realidade explosiva da Internet. Ou seja, se incluirmos os mercados de ações e de outros bens e serviços, podemos falar sem erro de vários trilhões de dólares negociados inteiramente via Internet em 2002 – muita gente boa estaria, portanto, errando para menos em suas previsões em algumas casas decimais.
Os sinais são claros: a revolução da Internet está apenas no seu começo. Mas já começa a ficar muito tarde para lidarmos com a outra face dessa moeda – a distância que separa cada vez mais as sociedades avançadas dos países em desenvolvimento, e que separa em cada país os que têm acesso aos recursos de comunicação e informação dos que não têm. É importante lembrar que esse fosso digital não é um triste privilégio nosso ou dos países mais atrasados. Até nos EUA a própria imprensa especializada está manifestando preocupação com a concentração de facilidades nos principais centros urbanos e as disparidades de acesso entre as etnias (onde as porcentagens de hispânicos e afroamericanos conectados em relação aos totais de cada etnia são muito mais baixas que as dos brancos).
Nos países avançados, a preocupação aparece na grande imprensa especialmente porque o alcance do mercado via Internet depende da conectividade da população. Segundo essa visão, por mais pobre que seja, a população dos países desenvolvidos é consumidora significativa e precisa conectar-se para fazer “e-negócios”. No entanto, o direito à comunicação é um direito essencial, e nesta perspectiva o fosso digital precisa ser fechado.
No Brasil, o fosso é grande, tanto internamente (menos de 4% da população conectada, sendo que a grande maioria destes está nas principais capitais) quanto em relação ao desenvolvimento da Internet nos países avançados. Basta dizer que enquanto estes já começam a implantar tráfego bruto Internet na escala dos petabits, o padrão de conectividade de nossas espinhas dorsais ainda é de megabits (um bilhão de vezes mais lento!) e os pontos de presença (pontos de conexão direta às espinhas dorsais) estão em menos de 20% do total de conglomerados urbanos. Ou seja, na imensa maioria dos núcleos urbanos brasileiros, uma conexão à Internet requer um interurbano caro e ainda precário.
A dificuldade de superar brechas em tecnologias de ponta é sempre muito grande, já que estas tecnologias são muito intensivas no uso de recursos e os custos de implantação e manutenção são similares em qualquer país. Além disso, essa superação só é possível através de pesados investimentos governamentais pelo menos na fase de alavancagem (da qual, no caso da Internet, ao contrário do que alguns de nossos “fazedores de decisões” pensam, ainda não saimos). E aqui as dificuldades aumentam ainda mais. Comparando EUA com Brasil, por exemplo, nosso produto nacional bruto, mesmo ajustado para levar em conta o valor real dos produtos na economia local, é oito vezes menor que o dos EUA, enquanto este tem uma população economicamente ativa apenas duas vezes maior.
Mesmo que as porcentagens de impostos sejam menores nos EUA, é evidentemente que a capacidade de arrecadação per capita é pelo menos quatro vezes maior nos EUA que no Brasil. Em conseqüência, temos muito menos dinheiro per capita em mãos doEstado para investimento e gasto. Mesmo que a máquina governamental fosse perfeita e incorruptível, faltaria dinheiro para cobrir os gastos sociais e ao mesmo tempo diminuir significativamente o fosso tecnológico – simplesmente não produzimos o suficiente para reproduzirmos os perfis de gasto dos países avançados.
Qual a saída? Buscar soluções inovadoras, mesmo conhecendo as limitações nas áreas de tecnologia de ponta. Tal como temos que solucionar o problema da saúde pública através da prevenção e do atendimento comunitário descentralizado em vez de concentrar o gasto em grandes hospitais, temos que buscar formas inovadoras de prover acesso universal sem que isso signifique necessariamente uma linha telefônica, um computador e uma conta na Internet para cada indivíduo. As nossas soluções não podem simplesmente copiar os do outro lado do fosso, ou não solucionarão nada.