Autores: Carlos A. Afonso, Virgilio Almeida, Demi Getschko. Publicado originalmente em poliTICs 20, abril de 2015. Versão em inglês publicada pela IEEE em anexo em PDF. A versão em português aqui apresentada teve algumas revisões.
Os processos multissetoriais (multistakeholder) visam reunir todos os principais setores em torno de uma nova forma de comunicação, de propor uma decisão (e possivelmente tomá-la) sobre um assunto específico. Eles se baseiam no reconhecimento da importância de alcançar equidade e assumir responsabilidades na comunicação entre os setores. Envolvem representação equitativa de três ou mais grupos setoriais e suas respectivas visões; baseiam-se em princípios democráticos de transparência e participação. E buscam desenvolver parcerias e redes mais fortes entre os vários setores.[1]
A Internet permitiu que a política, a economia, o trabalho, a diversão e os relacionamentos pessoais passassem a desenvolver-se cada vez mais no espaço cibernético. Não mais apenas uma tecnologia, a Internet tem agora impacto social e econômico forte e abrangente em todos os países. O espaço cibernético tornou-se estratégico para o desenvolvimento na maioria deles. Por conta disso, cada país vem elaborando suas políticas públicas e montando seus arcabouços locais para a segurança cibernética e a governança da Internet.
Os próximos anos serão fundamentais para traçarmos o novo mapa da governança global da Internet. As revelações feitas por Edward Snowden sobre a maciça vigilância exercida através dos meios cibernéticos e o anúncio da Administração Nacional de Telecomunicações e Informação (a NTIA dos EUA) de que a entidade pretende deixar seu papel de administradora do contrato da IANA poderiam mudar todo o ecossistema de governança global da Internet.
Organizado pelo Secretário Geral da ONU em 2003, o Grupo de Trabalho sobre Governança da Internet (GTGI/WGIG) introduziu a primeira definição funcional para o termo: “(governança da Internet é) o desenvolvimento e aplicação, por governos, iniciativa privada e sociedade civil, em seus respectivos papéis, de princípios, normas, regras, procedimentos de tomada de decisão e programas compartilhados que deem forma à evolução e ao uso da Internet.”[2] Desde então, os países vêm adotando diferentes modelos. Estes vão desde os utópicos de auto-gestão da liberdade individual alheios ao controle governamental até aqueles onde as atividades relacionadas com a Internet ficam sujeitas ao controle de governos e agências regulatórias. Muitas das variações nos modelos de governança da Internet baseiam-se em conceitos e ideias introduzidos por processos multissetoriais.[3]
O recente Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança da Internet (NETmundial) no Brasil produziu um documento recomendando que o eixo central para a evolução da governança da Internet seja composto de modelos multissetoriais (MMSs).[4] O documento apresenta o arcabouço da governança da Internet como um ecossistema distribuído e coordenado, envolvendo várias organizações e fóruns. O documento expressa que os organismos de governança sejam inclusivos e transparentes, e que sejam responsabilizados pelos seus atos, com estruturas e operações cujas posturas permitam a participação de todos os setores para tratar dos interesses de todos que usam a Internet, bem como daqueles que ainda não estão conectados. Então, o leitor deve estar se perguntando: qual o conceito multissetorial e como tem sido aplicado a assuntos práticos?
Fazemos aqui um apanhado geral dos MMSs, do seu uso e da sua evolução histórica, e ainda examinamos a adoção que este vem experimentando em vários domínios, particularmente no ecossistema global de governança da Internet.
ORIGEM E FUNDAMENTOS DOS MMSs
Em 1992, a Cúpula Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (a Eco '92), realizada no Rio de Janeiro, alertou o mundo para vários problemas relativos ao meio ambiente e ao desenvolvimento, e colocou a sustentabilidade na pauta da comunidade internacional, dos governos nacionais e dos representantes de vários setores.[5]
Para conseguir amplo apoio para os princípios da sustentabilidade, vários segmentos da sociedade precisaram aprender a escutar uns aos outros e a integrar visões e interesses distintos de forma a chegar a soluções práticas capazes de levar a um mundo mais sustentável. Essas discussões ambientais enfatizaram o papel dos stakeholders: indivíduos ou grupos com interesse em determinada decisão por poderem influenciá-la ou por poderem ser afetados por ela.
O primeiro organismo internacional a reconhecer o papel relevante do multissetorialismo na discussão de questões globais foi a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que em 1919 criou um modelo com representantes do governo, do patronato e dos sindicatos.
Mais recentemente ocorreram discussões multissetoriais da Comissão para o Desenvolvimento e Sustentabilidade da ONU (CDS), que introduziu na organização o conceito como um modelo de engajamento para questões do desenvolvimento sustentável. O documento “Agenda 21” para a Eco-92 é o primeiro em que a ONU inclui os papéis de diferentes setores num acordo global.
A adoção de processos multissetoriais tem sido lenta porque muitos governos e organismos intergovernamentais não se sentem à vontade com a influência cada vez maior de certos setores, enxergando-os como representantes não eleitos aos quais falta legitimidade. Mas as vantagens dos MMSs superam suas dificuldades, e eles criam benefícios mútuos para a sociedade como um todo. Na verdade, ele têm o potencial de promover melhores decisões através de contribuições mais amplas.
Algumas características são comuns a MMSs existentes. Em geral, variam conforme as questões tratadas, que vão desde o cuidado de saúde, pobreza e equidade de gênero até a governança da Internet. A Figura 1 mostra a composição típica de um MMS, incluindo setores e os principais componentes do modelo: metas, participantes, escopo, prazos e conexão com o poder decisório oficial.
METAS
Os MMSs podem ser concebidos para atingir metas que seriam inatingíveis caso cada setor atuasse sozinho. Por exemplo, a meta de preservar uma Internet unificada, não fragmentada, interconectada, interoperável, aberta, inclusiva, segura, estável, flexível e confiável não seria possível se houvesse apenas governos envolvidos no acordo.
PARTICIPANTES
Normalmente os MMSs envolvem representantes de grupos que tenham interesse ou que sejam afetados pela questão em pauta. Sua composição, por conseguinte, deve ser altamente variada. Por exemplo, no caso da governança da Internet, os principais setores envolvidos são a sociedade civil, os governos, a iniciativa privada e as comunidades técnica e acadêmica.
ESCOPO
Os MMSs podem ajudar a abordar questões nos níveis nacional, regional ou internacional. Por exemplo, a Corporação Internet para a Designação de Nomes e Números (ICANN) é uma instituição multissetorial que opera no nível internacional. Os cinco Registros Regionais da Internet (RIRs) se encarregam da distribuição dos identificadores de números alocados pela IANA. Estes são organismos multissetoriais que operam no nível regional.
LINHAS DE TEMPO
Os MMSs podem ser organizados para eventos pontuais ou para processos sem fim determinado, dependendo da questão que estiver sendo examinada. Por exemplo, o NETmundial foi criado para ser apenas um evento, organizado por um comitê multissetorial.[6] O Fórum de Governança da Internet (FGI/IGF) tem um mandato da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI/WSIS) que visa manter um fórum anual para o diálogo multissetorial sobre políticas. A ICANN é uma organização permanente com estrutura multissetorial para coordenar o sistema de atribuição de nomes de domínio, endereços IP e protocolos técnicos na Internet.
CONEXÃO COM O PODER DECISÓRIO
As estruturas multissetoriais podem interagir de diferentes formas com os processos decisórios oficiais nos níveis internacional, regional ou nacional. Alguns organismos multissetoriais são puramente informativos. Outros podem desenvolver boas práticas ligadas a determinado assunto e apresentá-las ao governo.
Há organismos multissetoriais também capazes de acompanhar questões que afetam a sociedade, tais como o índice de desflorestamento ou a qualidade do acesso à Internet oferecido pelas operadoras de telecomunicações.
ESTRUTURAS MULTISSETORIAIS PARA A GOVERNANÇA DA INTERNET
Do ponto de vista histórico, a oportunidade de vários setores participarem em processos de governança aumentou com o fim da Guerra Fria no início da década de 1990. A Eco-92 foi uma das primeiras conferências internacionais multissetoriais. Coincidentemente, foi o primeiro evento a utilizar a Internet, abrindo as primeiras oportunidades para a participação online. Isso foi especialmente útil para organizações da sociedade civil que não podiam arcar com as despesas de estar no Rio de Janeiro, e também para alguns governos da África que não tinham meios de comunicação remota com suas sedes.
Esse foi o início de uma série de conferências que agora baseiam-se na presença multissetorial em suas linhas de discussão. Destacam-se especialmente a segunda Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (CMDH/WCHR) em Viena (junho de 1993), que gerou a Declaração de Viena Sobre os Direitos Humanos aprovada por 171 países e em seguida adotada pela Assembleia Geral da ONU. A Conferência resultou na criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em dezembro do mesmo ano.
Desde então, a participação multissetorial tem sido uma característica das conferências da ONU e de suas agências. Uma pergunta interessante é: quais são os limites dessa participação? Processos pluralistas envolvem a sociedade civil, as comunidades acadêmica e técnica, e outros grupos de interesse que se reúnem, conscientes de seus respectivos papéis e responsabilidades, em prol de uma meta declarada em comum. Na última década, podemos destacar a importante participação da sociedade civil organizada com interesses relevantes em eventos tais como campanhas pelo direito à comunicação na sociedade da informação e a forte presença no processo da CMSI, onde o conceito de “governança da Internet” foi elaborado com certa profundidade.
De fato, o domínio da governança da Internet oferece alguns exemplos de processos multissetoriais. Por exemplo, o FGI é um fórum multissetorial para o diálogo normativo sobre questões de governança da Internet. Ele é aberto e inclusivo, reunindo todos os setores para trocar informações e compartilhar as melhores práticas sobre questões de políticas públicas relativas à Internet.
Outro exemplo é o Encontro NETmundial, que foi preparado como uma conferência multissetorial para discutir o futuro desenvolvimento da governança da Internet. A importância da conferência surge a partir da maneira como ela foi organizada e executada. A natureza multissetorial do encontro envolveu segmentos da sociedade civil, empresas privadas e as comunidades acadêmica e técnica de vários países. Com base em consenso preliminar, um documento de princípios e um guia para a evolução do ecossistema de governança da Internet foi aprovado por representantes de mais de 100 países.
PROCESSOS PLURALISTAS NA GESTÃO DOS RECURSOS DA INTERNET
Ainda que com suas limitações específicas, há processos decisórios pluralistas nas estruturas de gestão de recursos da Internet. Em constante evolução, as tecnologias cibernéticas são coordenadas por comitês como a IETF, que propõe normas e parâmetros através de recomendações adotadas por consenso após discussões em fóruns abertos. A coordenação global de distribuição de endereços IP é executada na prática por todos os cinco RIRs. Estes registros regionais de números trabalham de forma coordenada e consensuada através de um fórum comum: a NRO (Organização de Recursos Numéricos). Essas políticas são desenvolvidas em diálogos pluralistas abertos à participação de todos os setores.
Embora a governança do estoque central de recursos de numeração da rede esteja formalmente sob a ICANN, regido por contrato entre a ICANN e a NTIA, na prática os mecanismos de distribuição numérica são regidos pelos RIRs.
O foco principal da ICANN está em coordenar o endereçamento mnemônico da rede (nomes de domínio). Sua estrutura multissetorial de participação é bem organizada, através de entidades e comitês de apoio onde governos, empresas, registros (registries), distribuidoras de nomes (registrars) e entidades civis participam bastante e elegem representantes para o conselho da ICANN (alguns membros do conselho são indicados por um comitê de nomeação).
Há algumas limitações nessa abordagem pluralista; em particular, os processos decisórios na ICANN não se derivam totalmente dessas participações. As partes interessadas reconhecem que desempenham um papel mais assessor e consultivo nos processos decisórios da organização, com maior ou menor influência real. Mas é o conselho quem sempre toma as decisões finais. Isso não significa que os participantes estejam satisfeitos com essa condição. Cada setor repre - sentado na ICANN busca formas de expandir sua influência nas decisões dentro de um contexto onde o desequilíbrio é óbvio – por exemplo, devido a poderio econômico ou alavancagem política capaz de favorecer alguns setores.
USUÁRIOS DA REDE COMO PARTES INTERESSADAS
As redes computacionais existem com uma variedade de recursos e formas desde o início da década de 1970. Em contraste com essa variedade, a comunidade de usuários era, até meados da década de 1980, quase homogeneamente composta de membros da comunidade acadêmica procurando usar os recursos computacionais de maneira remota. A popularização dos PCs levou as pessoas a usá-los em suas próprias organizações, estimulando assim um maior envolvimento individual entre comunidades com interesses específicos para a troca de dados e ideias. Os velhos sistemas de quadros de avisos, que inicialmente propiciavam o intercâmbio de informações em ambiente isolado, demonstravam o anseio por comunicação direta entre usuários em torno de muitas questões.
No início da década de 1980, outra plataforma gerou ainda mais sinergia: a USENET. Milhares de máquinas baseadas no protocolo padrão UNIX e seu “programa de cópia UNIX-a-UNIX” (UUCP) trouxe integração para os grupos de usuários. A disseminação de muitos fóruns sobre tópicos variados (USENET News) propiciou discussões abertas e a criação de grupos de interesse. A disseminação do correio eletrônico e das malas diretas trouxe de uma vez por todas a segunda onda de usuários da rede: indivíduos e entidades da sociedade civil não tardaram em juntar-se aos acadêmicos para aproveitar o novo meio como um modo de comunicação mais rápido, mais barato e mais eficiente.
No Brasil, por exemplo, as redes acadêmicas surgiram no final dos anos 1980. Em 1991, a sociedade civil tornou-se a segunda onda, e a ampla diversidade de protocolos (Bitnet, UUCP, DECnet, X.28, X.25, X.400 e assim por diante) rapidamente convergiram para uma única solução: TCP/IP — a Internet.
A criação da World Wide Web, há 25 anos, moldou um novo cenário em que os usuários não apenas tiveram acesso à informação, mas também encontraram formas eficientes de serem ativos no ciberespaço, expressando suas opiniões e participando plenamente da rede. Curiosamente, antes da Web, pouco se falava sobre ameaças à segurança e à privacidade ou espionagem do tráfego de dados. Mesmo ataques de spam e códigos maliciosos eram raros na época, em parte devido à natureza analógica da comunicação em links de largura de banda estreita, e em parte porque os participantes eram acadêmicos e do terceiro setor. A expansão da Internet fora dos limites desses adotantes iniciais, juntamente com suas características disruptivas e capacidade de se estender além das fronteiras nacionais, mudou o cenário da rede.
Muitos países perceberam a Internet como algo diferente do mundo tradicional e altamente regulamentado das telecomunicações e começaram a trabalhar em maneiras de governá-la.
UM PRIMEIRO MMS
A necessidade de discussões permanentes sobre modelos de governança da Internet decorre de seu expressivo crescimento, tanto em número de usuários quanto em importância estratégica. A criação de uma estrutura multissetorial para a governança da Internet começou inicialmente dentro de um país e depois se tornou um modelo viável e aplicável globalmente. Ao examinar o caso brasileiro, podemos deixar isso bem claro. O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) foi criado em 1995. Ele antecipou algumas das características que a ICANN (criada em 1998) apresenta, e também se tornou uma referência para as discussões introduzidas na WSIS 2005.
O governo brasileiro criou o CGI.br como um comitê de governança multissetorial e não regulatório. Dois anos depois, a legislação brasileira de telecomunicações definiu a Internet como um “serviço de valor agregado” que a diferenciou da infraestrutura de telecomunicações que a suporta. Essa abordagem inovadora permitiu que a Internet crescesse rapidamente no Brasil. A diretoria do CGI tem 21 membros: nove de organizações governamentais, quatro da sociedade civil, quatro do setor privado e quatro da comunidade acadêmica e técnica. Os membros do governo são nomeados e todos os outros membros são eleitos por suas respectivas comunidades.
Observe-se que nenhum setor, mesmo o governo, tem a maioria dos votos no conselho. A composição do conselho do CGI reflete claramente a natureza multissetorial da Internet. O comitê funciona sem verbas públicas; a comunidade sustenta o CGI.br ao registrar-se no domínio .br ou ao adquirir blocos de endereços IP. Os recursos arrecadados são de natureza privada e qualquer superávit orçamentário é usado no desenvolvimento harmonioso da Internet no Brasil. O MMS inovador e sua natureza não governamental não costumam ser bem compreendidos pelo público em geral. A mesma observação se aplica ao seu comportamento “não regulamentador”, sempre em contraste com o ambiente tradicionalmente regulado na indústria das telecomunicações.
GOVERNANÇA DA INTERNET E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
A governança da Internet e o desenvolvimento sustentável são processos que têm lá suas semelhanças. O conceito de desenvolvimento sustentável refere-se ao desenvolvimento capaz de atender as necessidades atuais sem comprometer as necessidades das gerações futuras. O conceito que hoje respalda a governança da Internet também se refere aos princípios, normas, regras e procedimentos que amanhã irão conformá-la.
Os dois processos, portanto, trabalham com valores que são essenciais para as gerações futuras. Tanto a governança da Internet quanto o desenvolvimento sustentável precisam de um processo de diálogo e consenso entre todas as partes interessadas no intuito de construir soluções viáveis, trabalhar para implementá-las e avaliar os resultados. Os MMSs estão no centro dos dois processos, que enfrentam desafios globais com fortes impactos sociais e econômicos.
CONSTRUÇÃO DE CONSENSO
A construção de consenso é uma atividade fundamental para as estruturas multissetoriais de governança. Os representantes dos vários setores apresentam suas opiniões e posições acerca de um dado assunto. Em seguida, envolvem-se num diálogo que visa atingir uma compreensão mútua dos problemas. A partir dessa melhor compreensão, o presidente ou mediador do organismo busca o consenso. Essa busca por consenso nos MMSs quase nunca é um processo organizado e ordeiro. Como as partes interessadas participam em pé de igualdade, as discussões costumam ser confusas e seus desdobramentos, imprevisíveis.
Esse pé de igualdade é uma característica fundamental do MMS que visa reduzir a influência e o poder tradicionais de grupos específicos, acima de tudo a influência econômica e política. Toda parte interessada tem o direito de ser ouvida com base apenas na sua própria forma de enxergar o problema. Num processo de construção de consenso, todas as partes trabalham para criar soluções capazes de minimizar suas diferenças. Embora os participantes possam não concordar com todos os aspectos de um acordo, só se atinge o consenso se todos estiverem dispostos a aceitar a decisão e a participar da sua implantação.
Os MMSs estão em constante evolução. Trata-se de uma nova espécie na biodiversidade de estruturas para reger questões complexas. Mas não são fáceis de implementar. Há dificuldades inerentes à administração de um organismo multissetorial. A implantação deve ajustar o processo às especificidades das várias partes interessadas, especificidades tais como os momentos das decisões, sua representatividade e sua linguagem. Esses valores são fundamentais para conquistar credibilidade e legitimidade em cada comunidade – uma característica obrigatória para tornar o processo de tomada de decisões multissetoriais um processo viável e factível.
Além disso, o processo decisório pode ser tortuoso, dependendo de lideranças. Está claro que é necessário um aprendizado comum do processo multissetorial. Continuam sem resposta muitas perguntas relativas à estrutura e à dinâmica dos MMSs:
- Como identificamos o conjunto de partes interessadas mais adequado para trabalhar sobre uma determinada questão?
- Como definimos os mecanismos e critérios para escolher representantes de cada grupo?
- Como evitamos que um setor ou as corporações de maior influência e poder se apropriem do processo multissetorial?
- Como podemos usar técnicas de crowdsourcing para trazer contribuições aos diálogos em torno de questões difíceis?
- Quais tecnologias ajudariam os representantes setoriais a “sentir o pulso” daqueles que eles representam?
- Quais tecnologias ajudariam os organismos multissetoriais de governança a acompanhar os resultados dos seus acordos?
- Que tipo de arcabouço tecnológico vai de fato facilitar o diálogo em uma estrutura multissetorial de forma a atingir um mínimo de consenso?
- Que tipo de tecnologia pode ser desenvolvida para acelerar o processo decisório em organizações multissetoriais?
- Que tipo de modelo teórico vai respaldar a construção de consenso e o processo decisório em ambientes multissetoriais?
Essas perguntas representam uma oportunidade para a pesquisa e o desenvolvimento de novas tecnologias capazes de trazer mais eficiência aos processos de governança da Internet.
(*) Publicado em poliTICs 20. O original em inglês foi publicado em Almeida, V., Getschko, D., Afonso, C.A. "The Origin and Evolution of Multistakeholder Models". IEEE Internet Computing, janeiro/fevereiro de 2015. A tradução de "multistakeholder" para "multissetorial" não é precisa e é utilizada apenas por brevidade -- significa "múltiplos grupos de interesse", que não necessariamente são biunivocamente relacionados a setores econômicos, políticos ou sociais. Os casos aqui analisados consideram quatro setores: acadêmico/técnico, "terceiro setor" (entidades civis sem fins de lucro e sem finalidade econômica), empresarial e governamental.
1. M. Hemmati, Multistakeholder Processes for Governance and Sustainability: Beyond Deadlock and Conflict, Earthscan, 2002.
2. Report of the Working Group on Internet Governance, junho de 2005, em https://www.wgig.org/docs/WGIGREPORT.pdf.
3. L.W. Fransen e A. Kolk, “Global RuleSetting for Business: A Critical Analysis of Multi-Stakeholder Standards,” Organization, vol. 14, no. 5, 2007, pp. 667–684. L. DeNardis e M. Raymond, “Thinking Clearly about Multi-Stakeholder Internet Governance,” Proc. 8th Ann. Conf. Global Internet Governance Academic Network (GigaNet), 2013, em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2354377
4. “Declaração Multissetorial de São Paulo (NETmundial)”, abril de 2014, em https://cgi.br/publicacao/declaracao-multissetorial-do-netmundial
5. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/ECO-92. Ver também https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/Agenda21.pdf
6. V. Almeida, “The Evolution of Internet Governance: Lessons Learned from NETmundial,” IEEE Internet Computing, vol. 18, no. 5, 2014, pp. 65–69.