AlterNex - um resumo histórico

Publicado originalmente em 18-07-2022. Atualizado em 12-05-2025.
Carlos A. Afonso

Quando eu estudava e trabalhava no Canadá, nos anos 70, onde fui parar com esposa e filho depois de um périplo de vários anos no exílio durante a ditadura militar-empresarial no Brasil, a biblioteca de minha universidade em Toronto já era parte de uma rede eletrônica interligando bibliotecas nos EUA e Canadá. Minha formação multidisciplinar incluia a de engenharia, onde, na USP, usávamos um computador para cálculos complexos. Mas nunca tinha experimentado essa facilidade da comunicação entre computadores.

A primeria conexão de longa distância bem sucedida entre computadores ocorreu em 29 de outubro de 1969, entre um centro de pesquisas da Universidade da Califórnia em Los Angeles e o Centro de Pesquisas de Stanford, a mais de 570 km. Em paralelo, começavam a surgir os primeiros computadores de uso doméstico colocados à venda, o Apple II em junho de 1977 e o IBM PC em agosto de 1981, entre outros.

Mas por onde e quando começou a Internet? É uma longa história, que depende dos critérios utilizados. Alguns consideram que tudo começou com o lançamento do primeiro Sputnik, em 1957 pela União Soviética. Outros mais radicais preferem considerar o ponto de partida em torno do ano 3.000 AC, quando teria sido inventado o ábaco na Babilônia. Os mais sensatos dividem-se entre a criação do conceito de rede eletrônica por comutação de pacotes (1961), do Interface Message Processor (IMP, de 1968), ou dos protocolos TCP/IP (1974).

E no Brasil? Quando essa história começou? Há muito que contar, mas procuro aqui resumir alguns marcos históricos importantes, enfatizando que a Internet no país nasceu como resultado dos esforços de duas vertentes: a acadêmica, através da iniciativa da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), e a das entidades civis, estas sob a liderança do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) -- ambas sob o olhar Desconfiado e aturdido do monopólio estatal de telecomunicações da época, a Telebras.

Com a anistia ainda durante a ditadura, no final de 1980 regressamos ao Brasil (trazendo um Apple II), para trabalhar com Betinho na criação do Ibase. O instituto foi assim a primeira entidade da sociedade civil a empregar microcomputadores para o processamento de informações.

Velletri é uma pequena cidade a uma hora de Roma. Entre 2 e 7 de outubro de 1984, lá reuniu-se um grupo de dez representantes de entidades civis com uma causa comum: a democratização da informação. Representavam organizações dedicadas a causas do desenvolvimento humano de várias regiões do planeta. Reconheciam que o surgimento das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) não só não podia ser ignorado pela sociedade civil, como deveria ser absorvido pela sociedade como instrumento de potencialização de suas capacidades e democratização do conhecimento.

A rede de entidades civis, batizada de Interdoc, formalizou seu mandato no Acordo de Velletri, em reunião organizada pelo Centro Internacional de Documentação e Comunicação (Idoc) de Roma. O acordo de Velletri, assinado pelo Ibase, Idoc (Itália), Codesria (Senegal), Desco (Perú), Ilet (Chile), AMRC (Hong Kong) e outras entidades, continha uma declaração de princípios que sintetiza os conceitos definidores do que viria a ser a Internet como um espaço democrático de intercâmbio de conhecimento:

"O bem-estar de um indivíduo e de uma comunidade dependem de seu acesso à informação e da sua capacidade de utilizar essa informação. Isso é portanto central no processo de desenvolvimento de todas as sociedades... Os avanços recentes e rápidos das novas TICs abrem novas possibilidades para que as ONGs se comuniquem e compartam informações... essa rede global só tem um papel válido a desempenhar no desenvolvimento se for criada por, vinculada a e a serviço de atividades locais... É preciso destacar que o manejo de informação não é uma meta em si, mas apenas um elemento essencial na ação para lograr resultados e melhoras significativas na vida das pessoas. O manejo da informação e práticas relacionadas de trabalho colaborativo em rede precisam ser voltados à mobilização da informação, não a sua imobilização."

Um dos promotores mais ativos da rede Interdoc foi Henri-Charles Foubert, um missionário do Idoc que no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 trabalhou com as populações pobres das Filipinas. Foubert entendeu nessa experiência que o silêncio daqueles sofrimentos não era apenas fruto da opressão política e militar, mas também produto de uma impossibilidade de expressão e comunicação permitidas pela mídia.

A rede Interdoc plantou a semente que resultaria na criação da rede mundial da Associação para o Progresso das Comunicações (APC), fundada em maio de 1990 em San Francisco, com a participação de várias entidades da rede, entre as quais o Ibase, com a ajuda imprescindível de organizações pioneiras como o Institute for Global Communications (IGC), de San Francisco, e o GreenNet, de Londres, entre outras. Nessa época, entidades civis de vários países já trocavam mensagens de e-mail usando as redes de pacotes (como a Renpac brasileira), ou sistemas de BBS (quadros de avisos eletrônicos) via linha telefônica, como a rede Fidonet.

Hoje a APC congrega 73 membros institucionais e 44 associados em 74 países e é uma organização-membro do Conselho Econômico e Social (Ecosoc) da ONU.

Em parceria com o IGC, e com o apoio do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), da Agência Brasileira de Cooperação (ABC, do Ministério de Relações Exteriores) e outras entidades internacionais, o Ibase iniciou em forma experimental em 1988 um serviço de intercâmbio de informações via computador voltado à sociedade civil. O objetivo central era facilitar o acesso a informações em âmbito internacional para o trabalho das entidades da sociedade civil, a custo mínimo e em forma cooperativa e, na medida do possível, auto-suficiente -- ou seja, a partir da contribuição dos próprios participantes.

Com essa perspectiva, o AlterNex, um serviço de comunicação e informação criado no Ibase e o primeiro provedor de serviços Internet brasileiro, entrou em operação definitiva, 24 horas por dia, a partir de 18 de julho de 1989, com conectividade via UUCP por discagem direta internacional ao IGC em San Francisco (na época a única forma de conectividade viável em termos de custo para esse tipo de comunicação). O IGC já era conectado à Internet de forma permanente via Universidade de Stanford.

Apoiado por entidades do Acordo de Velletri e da ONU, um servidor UNIX do AlterNex conectado à Internet nos EUA pelo protocolo UUCP abriu o acesso via linha discada e via Renpac do serviço de intercâmbio de mensagens para uso das entidades civis. Esta seria a data simbólica de deslanche da Internet no Brasil para além dos experimentos acadêmicos da época. Nascia o primeiro centro de acesso à Internet no país desenvolvido e operado por uma entidade da sociedade civil, já que, via IGC, o AlterNex passava a possibilitar o intercâmbio de mensagens e arquivos com usuários da Internet e de outras redes internacionais.

Do lado da comunidade acadêmica, em 1988 já se formavam no Brasil alguns embriões independentes de redes, interligando grandes universidades e centros de pesquisa do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre aos Estados Unidos. Com o objetivo de integrar esses esforços e coordenar uma iniciativa nacional em redes no âmbito acadêmico, o Ministério da Ciência e Tecnologia formou um grupo composto por representantes do CNPq, Finep, Fapesp, Faperj e Fapergs, para discutir o tema. Como resultado, surge o projeto da RNP, formalmente lançado em setembro de 1989, com atuação limitada ao âmbito federal e internacional. Nos estados iniciativas integradas ao projeto nacional seriam estimuladas para a ampliação da capilaridade da rede. Assim, a RNP nascia no mesmo ano do AlterNex do Ibase.

No final de 1990, em resposta a demandas de entidades civis interessadas em participar da primeira grande conferência da ONU com participação multissetorial -- A Eco '92, no Rio de Janeiro --, o Ibase procurou a ONU para propor a montagem de uma rede de computadores ligada à Internet nos espaços da conferência. Muitas entidades ambientalistas (e até mesmo funcionários de alguns governos) não poderiam viajar ao Rio e queriam ter acesso aos debates e documentos do evento.

O projeto do Ibase para a Eco '92, conhecido como ISP/Rio, foi aceito pela ONU e incluido no Acordo de Sede com o governo brasileiro, depois de mais de um ano de negociações por parte do Ibase (com o apoio informal de funcionários do PNUD em Nova York e o apoio crucial de lideranças da RNP, como Tadao Takahashi), tanto para formalizar esse acordo como para levantar recursos para viabilizá-lo. O Acordo de Sede requeria a instalação de um circuito internacional IP de 64 kbit/s à Internet nos EUA, a ser instalado nas dependências do Ibase. A contraparte nos EUA seria a BARRNet, através do Institute for Global Communications, IGC (o primeiro sistema da APC a ter uma conexao dedicada à Internet).

Com o Acordo sancionado pelo governo brasileiro, já próximo à data da conferência, membros da APC vieram ao Rio para colaborar na implementação -- era grande o desafio de ativar uma rede em três espaços da conferência (o principal no Riocentro, o espaço da imprensa no Museu do Telefone e o espaço das entidades civis no Hotel Glória e adjacências). A colaboração de especialistas das entidades da APC (baseada no trabalho voluntário de vários técnicos e pessoal de apoio), bem como da empresa de telefonia estatal Telerj, foram fundamentais para que o projeto tivesse êxito.

O projeto Internet da Eco '92 foi um marco fundamental da Internet brasileira, porque quebrou resistências governamentais à abertura de conexões Internet permanentes para a RNP no país. Foi assim que foram ativados finalmente dois canais permanentes de 64 kbit/s com os EUA a partir de São Paulo (Fapesp) e Rio de Janeiro (UFRJ).

Do lado do Ibase, um esforço continuou a ser feito para disseminar a proposta da rede, e um projeto de incubação de provedores (hoje usa-se o termo "start-ups") foi iniciado em 1992, com a conexão de dezenas de serviços de BBS ao AlterNex para troca de mensagens com a Internet. No final de 1994 o AlterNex listava 56 BBSs nacionais e internacionais utilizando o serviço para troca de mensagens com a Internet. Daí nasceu boa parte dos provedores Internet do país.

Além da iniciativa de oferecer o intercâmbio internacional de mensagens a dezenas de BBSs, o Ibase ativou em 1994 em parceria com a RNP o Centro de Informações de Redes para ONGs (CI-ONG), com o apoio do PNUD. O CI-ONG permitiu a formação de jornalistas, estudantes e membros de entidades civis nos vários aspectos do uso e desenvolvimento das TICs e da Internet.

Os bons resultados do projeto ISP/Rio levaram à repetição da iniciativa pelas equipes da APC (com a participação da equipe do AlterNex) na Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993), na Conferência sobre População e Desenvolvimento do Cairo (1994), na Cúpula Social de Copenhague (março, 1995) e na Conferência sobre Mulheres e Desenvolvimento (Beijing, setembro de 1995). Seguindo a filosofia da APC de participar dos processos e não apenas dos eventos no âmbito da ONU, de cada um desses projetos resultaram redes temáticas internacionais de ONGs e um grande acervo de informações oficiais e resultados de debates distribuidos pelos sistemas filiados à rede.

Em 1995, entidades acadêmicas lideradas pela RNP, com a participação do Ibase e de membros do governo federal, formularam a proposta de criação de um conselho nacional de governança da Internet brasileira, para garantir que certos conceitos e princípios fossem seguidos no desenvolvimento da rede no país. Entre eles, a idéia de participação ampla nas discussões da governança da rede, o conceito do nome de domínio de país como patrimônio da comunidade e não uma mercadoria, a noção que a troca de dados entre redes nacionais tem que ser feita dentro do país e não através de espinhas dorsais estrangeiras, e especialmente a visão que a Internet deve ser considerada pela regulação e legislação de cada país como um serviço de valor adicionado sobre os sistemas de telecomunicações.

Formou-se assim a base para a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), formalizado pelo governo federal em 31 de maio de 1995 juntamente com uma norma que definia a Internet como serviço de valor adicionado, desvinculando-a da regulação das telecomunicações -- conhecida como Norma 4. O CGI.br foi o primeiro organismo de governança da Internet no mundo, quando o próprio conceito de "governança da Internet" ainda não tinha sido formulado, tendo sido definido no âmbito da ONU em 2005, somente 10 anos depois da criação do CGI.br.

Curiosidade: por que a Anatel resolve, depois de 30 anos (!), abolir a Norma 4, que foi promulgada pelo Ministério das Comunicações da época (já que a Anatel nem existia ainda), e tem contribuido decisivamente para o desenvolvimento excepcional da Internet no país??

Hoje, o CGI.br tem em seu conselho representantes de entidades civis, acadêmicas e do setor privado, todos eleitos pelas suas próprias comunidades de interesse. É um exemplo de parceria pluralista para atuação comum entre governo e sociedade. Supervisiona um centro de excelência na administração de nomes de domínio e distribuição de números IP reconhecido mundialmente pelos seus projetos pioneiros de apoio ao desenvolvimento da Internet no país -- o NIC.br. Entre outras iniciativas fundamentais, o NIC.br desenvolveu e coordena uma das maiores redes mundiais de pontos de troca de tráfego (em todas as capitais e principais cidades do país), os PTTs, através do projeto IX.br. Hoje o tráfego diário que passa pelo PTT de São Paulo o torna o maior do planeta.

O AlterNex foi extinto, mas com base nessa experiência outros projetos foram desenvolvidos: o RitsNet (da extinta Rede de Informações para o Terceiro Setor) e posteriormente o projeto Tiwa do Nupef.