Internet e acesso universal (1999)

Estamos a pouco mais de ano e meio para o século 21. Desde meados do século atual, temos vivido as conseqüências da revolução disparada pela invenção do transistor (em 1947). Foram precisas ainda algumas décadas até que pesquisadores e a indústria aprofundassem o entendimento da descoberta de William Shockley, Walter Brattain e John Bardeen para desenvolverem produtos e serviços baseados na tecnologia.

A culminação deste processo foi o domínio industrial dos circuitos integrados (os primeiros disponíveis no mercado datam de 1961), possibilitando concentrações fabulosas de transistores em espaços de alguns milimetros quadrados. Pouco depois nasciam os microprocessadores (o primeiro foi criado na Intel por Ted Hoff, em 1970, com 2.300 transistores) – reproduções super-miniaturizadas dos computadores. Um microprocessador moderno concentra milhões de transistores e elementos de memória, bem como componentes auxiliares, em menos de quatro centímetros quadrados. Na verdade, hoje a concentração só não é maior por problemas termodinâmicos (aquecimento), mecânicos (precisão das máquinas que geram as camadas de estado sólido, espaço para as conexões elétricas) e físico-químicos (componentes aproximando-se da escala molecular).

Uma das conseqüências cruciais desse avanço foi o lançamento de um novo eletrodoméstico – o microcomputador. Nascido em meados da década de 70, originalmente como uma geringonça para estudo e experimentação, o micro passou a ser uma necessidade cada vez mais indispensável, particularmente a partir do lançamento comercial dos computadores Apple. A outra conseqüência foi o uso intensivo dessa tecnologia no desenvolvimento de sistemas de telecomunicações, especialmente para troca de informações entre computadores.

Em decorrência, a comunicação tradicional, analógica, de voz e imagem, passou cada vez mais a ser digitalizada (convertida a dados) para permitir maior eficácia e melhor gerência da transmissão de informação. Entre as diversas propostas de padrão para troca digital de dados, surgiu o TCP/IP – o protocolo da atual Internet – que desafiou os burocratas da padronização de telecomunicações em todo o mundo. Em alguns países (como o Brasil), pensou-se até em tornar ilegal o uso desse padrão, que nascia informalmente nas universidades americanas e se propagava como fogo de pólvora. Como a tecnologia era de domínio público e enfatizava a mesma funcionalidade em qualquer computador, estavam dadas as condições para a expansão rápida para onde quer que houvesse uma linha telefônica e um microcomputador.

A junção da proposta da Internet nascida nas universidades americanas com a presença cada vez mais generalizada do micromputador em escritórios e lares dos países industrializados provocou uma revolução na comunicação humana, cujo impacto ainda não podemos avaliar em toda a extensão – já que a Internet é uma explosão cuja onda de choque ainda não desapareceu. É possível que venha a ser considerada como o terceiro marco em toda a história da comunicação humana depois da descoberta da escrita e do invento de Gutemberg, superando de longe a telefonia e a radiodifusão, e que venha a absorver completamente essas tecnologias.

É precisamente o caráter horizontal, sem centros de controle e sem imposições governamentais, da proposta da Internet que tem vingado até agora, combinado com o caráter cooperativo da gerência da rede como um todo através de instituições civis autônomas, que a torna hoje uma rede de comunicações mundial com características participativas até então inconcebíveis. É essa rede que os democratas precisam defender, como um dos pilares do desenvolvimento humano.

Nessa abordagem, que desafios enfrenta a rede daqui para a frente? Como se desenvolverá ao longo do próximo século? Claro que somos bafejados pelo pessimismo, quando vemos que o século termina como começou, com guerras na Europa, provocadas em grande medida por desavenças étnico-culturais que se arrastam pelo menos desde o século 14, com a maioria da população mundial em situação de extrema pobreza, e que temos ainda muito a aprender em termos do respeito à diversidade, solidariedade, liberdade, participação e igualdade – as bases da democracia na visão de Betinho. Mas alguns temas fundamentais precisam ser considerados para consolidar a Internet democrática e universal, e o espaço deste texto é pouco para isso.

Vejamos pelo menos um desses temas fundamentais: o acesso universal. O paradigma é simples – assegurar que todos possam utilizar individualmente as redes de comunicação e informação. Infelizmente, isto é impossível de acordo com os atuais níveis e tendências de desenvolvimento humano, bem como o padrão de infraestrutura necessária, na maioria dos países, o que torna o paradigma em si inútil exceto como referência ideal. Ademais, a proposta da AT&T de tornar-se o monopólio de telefonia nos EUA a partir da década de 30 foi justificada como a única maneira efetiva de garantir acesso universal1 – revelando que o conceito tem que ser tratado com os cuidados devidos.

Como imaginar o acesso universal em um mundo em que apenas três pessoas têm mais riqueza que a soma dos produtos internos brutos de 48 países, e em que metade da população tenta viver com um ingresso de menos de dois dólares por dia?2 Falar sobre acesso às redes e direito à informação para essas pessoas que estão em batalha diária (que frequentemente perdem) por comida e abrigo é como gritar para alguém que está caindo de um edifício que ela tem o direito de protestar contra sua tragédia.

Na verdade, os 150 milhões de pessoas que hoje têm acesso à Internet representam menos de 3% da população mundial – e a imensa maioria dessa minoria está nos Estados Unidos, Canadá, Europa e Japão. No Brasil, menos de um por cento podem utilizar individualmente esse instrumento. Mesmo que a população mundial “individualmente conectada” dobre no final do ano 2.000, como prevê um dos inventores do TCP/IP, Vinton Cerf, e mesmo que dobre o número de brasileiros com acesso, ainda assim teremos em nosso país menos de duas em cada cem pessoas com este privilégio.

Idealmente, a realização do acesso universal às tecnologias computadorizadas de comunicação e informação (TCIs) segue uma cadeia de eventos: se estiver disponível, tem que ser barato; se for barato, tem que ser irrestrito (sem censura); se for irrestrito, tem que ser útil (para justificar a despesa social para mantê-lo e desenvolvê-lo); se for útil, tem também que ser divertido – já que, os rigorosos militantes que me perdoem, um componente central do paradigma de desenvolvimento humano é a liberdade para o lazer. Como contribuir para essa realização considerando que o acesso individual generalizado é ainda (e vai ser por muito tempo) impossível?

Uma alternativa é disseminar o acesso às TCIs tanto quanto possível para os atores sociais organizados que podem efetivamente atuar como multiplicadores, de tal modo que as pessoas relacionadas a estes atores acabam recebendo os benefícios dessa disseminação. Se cada trabalhador da cana em Pernambuco não pode ter um telefone e um micro à disposição, seu sindicato pode. Se as comunidades chamadas “carentes” não podem ter acesso a esse instrumento, suas entidades de apoio podem. Se violações de direitos humanos não podem ser denunciadas pelas vítimas mundialmente pela rede, as ONGs podem realizar essa denúncia, e assim por diante.

Uma forma de realizar esse esforço de propagação dos meios de acesso que conta com experiências de sucesso (e alguns fracassos) em vários países é o telecentro comunitário. Há esforços importantes para construir e manter redes de telecentros que, além de contarem com uma rede local de computadores conectados à Internet, mantêm no mesmo espaço um programa de treinamento no uso da tecnologia para disseminação e intercâmbio – são os TCMPs (telecentros multipropósito)3. Como uma das dificuldades desses telecentros é a auto-suficiência, normalmente eles não são gratuitos, procurando combinar a cobrança (a preços quase simbólicos) pelo uso com a busca de patrocínios de empresas, agências e governos. Os mais exitosos TCMPs são os construidos e mantidos por iniciativas locais, dependendo minimamente ou nada de verbas governamentais ou internacionais.

Surpreendemente, apesar do desenvolvimento técnico da Internet brasileira e do esforço da Rede Nacional de Pesquisa (RNP) de estender seus serviços a entidades civis (muitas vezes com forte oposição interna), o Brasil é um dos países que, tendo em conta esse desenvolvimento, tem um péssimo registro no esforço de realizar o acesso universal.

A presença de telecentros Internet no Brasil é ridícula se comparada com o Perú, por exemplo, em que a RCP (a Rede Científica Peruana)4 disseminou TCMPs por praticamente todas as principais cidades peruanas. Até mesmo em cidades devastadas pela guerra e pobreza em outros países há telecentros atuantes e operados por entidades civis – em Phnom Penh, por exemplo, pelo menos dois TCMPs são operados com sucesso por entidades civis5. Exemplos similares estão em outros países asiáticos e em vários países africanos (em que há um pioneirismo em formas inovadoras de conectividade). No Brasil, essas entidades ainda não buscam realizar um esforço coordenado de reduzir essa brecha, tanto pelo lado do acesso como pelo lado da disseminação de informação.

Curiosamente, o governo brasileiro tem tido um grande avanço, reconhecido mundialmente, no uso da rede para disseminar informação e serviços, enquanto as entidades civis comumente evitam o meio – particularmente as entidades mais tradicionais, com lideranças velhas que temem esse choque tecnológico de comunicação – ou apenas usam a rede para uma tímida troca de mensagens.

Em relação ao universo de mais de 200 mil entidades sem fins de lucro no país, a presença destas na Internet é ainda muito pequena – menos de um por cento delas têm páginas na rede que vão além da presença institucional e podem ser considerados espaços relevantes de disseminação de informação. Desde que o Ibase decidiu abandonar seu projeto pioneiro de rede6, ficou uma lacuna que somente agora começa a ser preenchida por iniciativas inovadoras, como a Rits (Rede de Informações para o Terceiro Setor) e esforços regionais como o Web Zumbi e a rede Ocara. Mas um terreno precioso se perdeu e precisa ser recuperado urgentemente. A causa do acesso universal não pode ser deixada nas mãos de acadêmicos, burocratas do Estado ou empresas privadas – porque é a própria causa da democracia.

Carlos A. Afonso foi co-fundador do Ibase e é diretor de desenvolvimento da Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits).

1 Robert Cannon, “The Universal Service Program for Schools, Libraries, and the Internet,” The CPSR Newsletter (Palo Alto: primavera 1998, p.4). 

2 Quoted by Ignacio Ramonet, “Stratégies de la faim,” Le Monde Diplomatique (Paris: Novembro, 1998).

3 Sobre telecentros, uma das melhores fontes é o International Development Research Centre (IDRC), do Canadá. Ver por exemplo http://www.idrc.ca/acacia/telecentre.html.

4 Ver o site da RCP: http://www.rcp.net.pe.

5 Carlos A. Afonso, A Report on PAN-supported Internet Service Providers (IDRC, 1999).

6 O trabalho pioneiro do Ibase na democratização do acesso às redes foi de grande influência na definição da política nacional para a Internet. Apesar desse trabalho hoje estar reduzido a pouco mais que uma página de presença institucional (http://www.ibase.br), isso não diminui de nenhum modo a importância de seu papel na história da rede brasileira.