Governança da Internet e desafios da transformação digital (2022)

Os autores Demi Getschko, Alexandre F. Barbosa e Carlos A. Afonso foram convidados pela Rivista italiana di informatica e diritto, de Florença, para apresentar a experiência brasileira em governança da Internet. Abaixo está a introdução do texto. Versões em português e italiano do texto completo estão em anexo, bem como o conteúdo completo da Rivista. O conteúdo foi publicado também em um livro: Laura Abba, Adriana Lazzaroni, Marina Pietrangelo (eds),  La Internet governance e le sfide della transformazione digitale, Editoriale Scientifica, Napoli: 2022.


A sociedade tem passado por profundas transformações, numa velocidade cada vez maior. Dois dos principais agentes dessas transformações são, por um lado, o processo de transformação digital por que passam governo, organizações e indivíduos e, por outro, a consolidação do uso e da adoção da Internet como infraestrutura crítica para os processos sociais, econômicos, políticos e culturais.

A gradual e crescente adoção da rede tem permitido consolidar o conceito da sociedade da informação, que marca a passagem de uma economia baseada na produção industrial para uma economia baseada no fluxo de informações e dados em redes. A democratização da informação, consequência dessa adoção universal da Internet, possibilitou a criação e o compartilhamento de conhecimentos capazes de promover o desenvolvimento social e econômico das sociedades. Neste sentido, observa-se que as interações sociais são cada vez mais mediadas pelas tecnologias digitais; além disso, a conectividade à Internet tornou-se componente central no processo de transformação digital da sociedade.

A conectividade à Internet é, ao mesmo tempo, o motor e as engrenagens que movem a economia digital e a transformação digital, desempenhando funções essenciais para o desenvolvimento social e econômico, para os direitos humanos e para a garantia dos valores democráticos numa sociedade. Essa nova realidade requer a redução das desigualdades existentes e a garantia de uma conectividade universal. Portanto, o foco do debate sobre a inclusão digital deve deixar de tratar apenas o acesso físico à rede para incorporar conceituações multifacetadas, incluindo, por exemplo, diferentes tipos de habilidades digitais, motivação para o uso da rede e capacidade de geração de oportunidade decorrentes desse uso. Assim, as políticas de inclusão digital e de universalização da conectividade devem ser capazes de cruzar as fronteiras do acesso puramente físico para garantir o desenvolvimento de habilidades digitais individuais, de acordo com os novos paradigmas impostos pela sociedade da informação e da economia digital.

A partir de uma perspectiva histórica, este artigo explora o papel relevante exercido atualmente pela experiência brasileira de governança da Internet no desenho de políticas públicas e nas ações de organizações acadêmicas e da sociedade civil para garantir a inclusão digital de pessoas e organizações na direção da conectividade universal e significativa. O desafio de reduzir a diferença de oportunidades geradas entre as pessoas conectadas e as que ainda não estão pode ser enfrentado com ações de melhoria da infraestrutura da Internet no país, por exemplo, por meio da alocação de recursos para troca e racionalização de tráfego, e melhoria da eficiência da rede, capazes de estimular a redução de eventuais barreiras, como a barreira de custo do acesso ou das habilidades digitais. Essas ações estão diretamente relacionadas com a estrutura de governança da Internet estabelecida no Brasil há quase três décadas. Aqui, consideramos a governança como os mecanismos institucionais, as regras e as normas que abrangem a tomada de decisão consensuada entre representantes de governo, do setor empresarial, de organizações da sociedade civil e da comunidade acadêmica nos diferentes domínios referentes ao ambiente da Internet.

“A governança da Internet ganha cada vez mais espaço junto à opinião pública. Quanto mais a sociedade moderna depende da Internet, mais relevante é a sua governança”. Por um lado, a governança da Internet é um elemento chave no processo de desenvolvimento dada a sua importância para a economia global; por outro lado, não se pode conceber que os esforços de desenvolvimento estejam desconectados da Internet. Portanto, os debates sobre governança da Internet afetam a capacidade de um país gerenciar questões sociais, culturais, ambientais e econômicas do desenvolvimento. Assim, a governança da Internet adquire destacada relevância para a inclusão digital e redução das desigualdades por meio da ampliação da conectividade. Para além da universalização da conectividade e consequente redução da desigualdade, três outras dimensões da governança da Internet tornaram-se fundamentais no debate contemporâneo: a proteção da privacidade, a segurança cibernética e a garantia dos direitos humanos no ambiente on-line.

Desse modo, verifica-se que o processo que deu origem ao modelo de governança da Internet no Brasil evoluiu de forma colaborativa, neutra e participativa por diferentes atores que representam diversos setores da sociedade; ademais, está marcado por importantes fatos históricos que contribuíram com a expansão do acesso à rede mundial de computadores. O diálogo construtivo entre o governo e a sociedade está na gênese desse modelo, cujo caráter multissetorial e busca permanente de consensos entre atores que o compõem garantem uma governança que produz impactos significativos não apenas nas políticas de universalização da conectividade, mas também nos debates políticos necessários para tratar as complexidades contemporâneas do ambiente on-line. De acordo com a Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD), a exitosa experiência brasileira de governança da Internet é uma referência mundial por garantir uma configuração multissetorial capaz de promover e coordenar debates relevantes de interesse nacional em áreas críticas para a transformação digital, segurança digital, proteção de dados pessoais, que facilitam a concepção de marcos legais sobre direitos e deveres no ambiente digital [6]. Os resultados positivos desse modelo são frutos do diálogo multissetorial que acontece no âmbito do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Espera-se que os elementos constituintes da experiência de governança no Brasil apresentados neste artigo possam contribuir com o desenho e a implementação de processos de governança multissetoriais, a fim de promover impactos significativos na sociedade.